Não deu tempo de te contar as minhas mais recentes serelepices. Nos últimos meses eu pensei demasiado em ti. Torcendo pela tua recuperação e bem estar, mas também queria dividir contigo o que me acontecia. Acho que ia me achar corajosa ou louca, ou as duas coisas junto. Embora antes eu tenha experimentado aquela espiral de sentimentos, lágrimas e fraqueza que em outros momentos era só tu quem conseguia me tirar e me fazer gargalhar: “Deixa de drama Magrela! Não complica, vamos tomar um chope!” Nossos problemas e angústias dos anos 90 eram resolvidos facilmente com a chegada do segundo chope. O que não impedia que empinássemos mais uma (uma só?) dúzia deles. Gelados, afoitos, mergulhados nas nossas divagações e gargalhadas. Não conhecíamos com intimidade o desânimo e o cansaço nem passava perto do nosso corpo. Só queríamos mais uma rodada de boas risadas garantidas, histórias das nossas aventuras e dos escritores e artistas que admirávamos. E tu me apresentaste tantos. Vida pura. “Amor, alegria, sacanagem todo o dia” era o brinde que eu  fazia. Lembro como se fosse hoje da primeira vez que nos olhamos. Eu ainda estava tímida na redação e deveria ser o segundo ou terceiro dia de trabalho e mesmo que tu ainda estivesse burilando o escritor e cronista genial que te habitará para sempre, as gostosas das peladas do IAPI récem ganhavam vida e malícia dentro de ti. Mas eu, uma foca eufórica recém-formada, estava entre gigantes. A nossa amiga Ju já tinha me dito que tu eras o editor de esporte faceiro e bacana e que certamente iríamos nos adorar. Intensa e vestida de paixão, inteira de vermelho porque o Inter tinha ganhado algum Grenal, eu esperava saírem as chamadas da impressora (…tudo está em Zero Hora dominical..) que ficava na frente da tua mesa. Tu parou de redigir naqueles computadores dos Flinstones, colocou a mão no queixo, um gesto típico teu que se repetiu tantas vezes, com teu ar sábio e questionador sapeca e deve ter pensado: “Que diabos essa guria tem na cabeça para querer passar credibilidade vestida desse jeito.” No bar da nossa amada Lara, nos cruzamos horas depois, eu subia a escada vinda do fumódromo e tu sorvia teu café fazendo rir o nosso querido seu Espina. Me perguntou: “Oi, tu é a guria nova da divulgação, né? Me conta, algum canalha já deu em cima de ti?” Fiquei surpresa e ri, respondendo que ainda não. Tu também riu e me disse: “Bom então eu acho que serei o primeiro, vamos tomar um chope hoje?” A Eurídes, uma colega nossa engraçada e meio brava, nos observava ali naquelas quatro cadeiras que tinham em frente ao bar. Se meteu na conversa: “Aí, ó David, guriazinha nova na redação.. Cuidado!!! Hein.. Aqui na redação é assim; ou tu enlouquece ou tu emputece!” Demos a nossa primeira das milhares gargalhadas juntos. Tu, repórter ligeiro, emendou: “E tu Eurídes, o que tu fez me conta?” Ela respondeu: ”Eu dei uma puteada no início e agora tô louca.” Voltamos a rir e saímos cada um para um lado e acho que nosso primeiro chope dos tantos que vieram foi naquele dia mesmo ou nos seguintes. A tua vontade de ajudar as pessoas a realizarem seus sonhos e serem mais felizes sempre me comoveu. Talvez porque tive a imensa sorte de ser uma delas. Tu sabia que meu maior desejo era aprender a ser uma boa repórter e escritora. E me pegou pela mão, me sentou na cadeira ao teu lado e me ensinou com a paciência de um Buda. Minha primeira pauta no jornal foi uma série sobre os personagens e a rotina do futebol de várzea de Porto Alegre. Eu disse que não entendia absolutamente nada e que várzea para mim era ali perto de Gramado. Tu riu e me disse: “Uma boa repórter sabe contar qualquer história e tu é uma boa repórter. Curiosa e apaixonada. Eu te ajudo.” Percebendo que eu gostava de crianças, me incubistes de cuidar do Esportinho. Um dia cheguei esbaforida na tua mesa e disse: “Tu não vai acreditar! Sabe aquele ator de Hollywood que fez o Sansão e Dalila, o Victor Mature? Recebi um telefonema da mulher dele e ele morava ali em Gravataí e jogava sinuca no Bom Fim, isso é uma baita pauta, não é? Tu me respondeu: “Calma Magrela, já ouvi falar nesta história, tem que ver. Acho brabo que ele tenha morado ali em Gravataí e a gente só fica sabendo agora… Mas, de qualquer maneira, esse pústula enganou a pobre mulher, vamos cuidar para preservá-la, mas pode ser uma boa matéria. Vai atrás. Eu te ajudo.” Tu me ajudou nessa e em todas as pautas das nossas vidas. Principalmente as da alma, que eram as únicas impossíveis para nós. Tu me dizia: “Tu te agita, perde a paciência e não presta atenção no que estou te mostrando. Tu tem que manter o foco, se entender dessa vez como a frase fica melhor, já vai escrever certo amanhã e mais cedo a gente se libera para o chope.” Nossa vida foi assim: “Chope, suor e lágrimas”. Trocamos o sangue pelo chope e o suor dedicávamos à labuta e às noites sem fim. As lágrimas eram sempre por minha conta. Um dia, saímos de um Lilliput, e eu e o nosso parceiro Ricardo Carle acabamos encontrando uma árvore na Assis Brasil. O mamão que eu tinha esquecido no banco de trás se espatifou no vidro da frente e as bolinhas pretas derramavam-se penduradas no espelho retrovisor. Entrei em pânico, e de tanto chope pensei que as bolinhas eram os nossos miolos, meus e do Carle. Olhei para o Ricardo e ele sangrava tanto no rosto, que só consegui parar de chorar dois dias depois. Ele foi para o hospital e logo se recuperou, mas eu sentia culpa. No outro dia tu foi para a casa dos meus pais onde eu estava porque viu que eu não ia parar de chorar. Lá pelas tantas tu me olha e diz: ”Olha só Magrela, eu tô aqui para te animar. Chega de chorar, pô, o cara tá bem. Mas se tu quer chorar, pega um papel e limpa o ranho, por favor.” Eu comecei a rir e tudo foi passando de novo. Por ironia do destino, em mais um dos meus ímpetos criativos, eu te escrevo hoje da Espanha. Embarquei no dia seguinte em que publicastes a tua última crônica, empolgada e feliz com uma possível melhora tua. Além da tua obra leve e linda para a humanidade, a Kelly para mim é tua herança, outra serelepe que não sairá do meu coração. E nós duas, como todos os teus amigos, te amamos tanto, que jamais deixamos de ter esperança de brindar de novo contigo. No segundo museu que eu visitei, eu lembrei muito de ti porque me dei conta que não conheço muito os pintores norte-americanos. Um em especial eu adoro e sempre que me deparo com quadros dele, percebo essa minha ignorância em relação aos outros, não vou muito além do Pollock e da pop art do Warhol. No Thyssen são poucas obras do Edward Hooper, esse meu favorito. Segui meu roteiro pensando que no próximo chope contigo e a Marcinha eu ia te perguntar sobre ele e me também saber dos outros. Passando em uma das lojinhas que fica bem no meio dessa ala dos americanos, dei de cara com essa caderneta da foto acima e amei sem saber que era do meu pintor favorito. Comprei e perguntei: “Onde está esse quadro? Já passou?”. O rapaz me disse que se eu voltasse um pouco o encontraria. Voltei e tirei o celular para fazer a foto da pintura e do crédito. A moça não deixou tirar fotos, mas pensei sempre otimista: “Bom, tenho a minha cadernetinha. Nunca esquecerei dessa obra e vou estreá-la escrevendo algo bonito no dia 27 de maio. Sim, na ânsia de não esquecer ou deixar nada da beleza da vida para trás, fotografo tudo o que me encanta. Mesmo que nunca mais olhe, tenho a sensação de que toda a beleza da vida e da arte estará para sempre ao alcance dos meus olhos e do meu coração. Dentro da minha bolsa, olha que barbada. Sim, eu ando mais cabalística e sensível do que nunca. E levava “Habitácion de Hotel” (nome do quadro) comigo desde o dia 26. Vá que a minha inspiração viesse me visitar depois da meia noite em algum boteco de tapas. A Kelly me chamou ontem cedo para dizer que tu estava cansado. Entrei em desespero, meu nariz entupiu inteiro, chamei a Pri e não sabia o que fazer. Pratiquei yoga meio chorando, meio rezando, que ainda faço coisas ao mesmo tempo. A Pri me disse para ter calma, que ia dar tudo certo. Acreditei, tu me disse um dia que eu era a última pessoa boa do mundo. Na verdade, bom é tu, eu sou das mais tolas porque acredito nas pessoas, mesmo que eu sofra, como sou pura contradição, também me sinto mais feliz. Quando soube que tu finalmente estava descansando, eu estava noutro museu visitando uma mostra sobre impressão. Veja bem como diria a Mari Schoolze, meu whatsapp enlouqueceu de tanta mensagem. Todas as minhas amigas feias também te adoram, e me agradeciam ter tido a oportunidade de ter te conhecido por minha causa. Chorei com a Cris, a Paola e a Karú. A excursão de crianças deve ter se impressionado com meus ranhos. Já tinha planejado ir um pouco para o sol em um parque em frente ao museu. Escrevi para ti desesperada, chorando, rindo, suando, de biquíni azul com 40 graus. Está difícil terminar esse texto, sem estar aí com os nossos amigos e colegas. Abraçando a Márcia e o Bernardo. Ontem, voltando para casa, tomei uns chopes pela rua, e claro, me perdi pelo caminho. Não chamei ninguém de cagalhão, embora tenham uns tantos espalhados por aí e não sentei no colo de nenhum dono de bar, aqui não tem Lilliput. Mas acabei conhecendo um senhor “animado” como nós e pedindo um cigarro (sim, eu larguei aquela merda como tu dizia, mas ontem…). Eu já cruzei com com ele algumas vezes por aqui, contei sobre a saudade que estava de ti e ele te escreveu um bilhete. Sinto que Deus e Shiva me colocaram hoje sozinha no mundo não por acaso. Deve ter dedo teu, da Bela, do Urbim, do Carle, do Baila, da Mari… para eu deixar de ser uma Magrelinha chorona e me transformar em uma mulher de verdade. Não me preparei ainda para não encher a tua despedida de ranho. Prometo que vou honrar absolutamente tudo que aprendi contigo e lembrar eternamente da tua voz me dizendo: “Calma Magrela, te concentra, o mundo não vai acabar!” Tá longo, né? Azar, essas palavras são só para ti. Que me ensinou a amar a vida, nosso ofício e a ser verdadeira com o que se sentimos. Quem ficar com preguiça, nem precisa ler. Perdi um dos meus melhores amigos e meu editor mais talentoso. Tô puro ranho, mas já consigo sorrir lembrando da nossa turma. Prometo que vou me arrumar bem bonita e encher a rua de pernas.

Obrigada por tanto, vai contigo um pedaço serelepe meu. Te amo.

Mariana Bertolucci

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  1. Celina says:

    Mari, eu sou apaixonada pela forma como te comunicas. Parece que estamos juntas e tu contando isso. Que amor. Muito amor. Só amor e amizade. Lindo demais. Te adoro!!!!

  2. Daniela Diehl says:

    Lindo texto Mari…..Vc é uma magrela incrível que cativou meu coração ❤ e minha eterna amizade.Que teu amigo e colega descanse em paz.

  3. Vera says:

    Querida Mari. Tanta gente triste e todos com as melhores memórias do cara! De alguma forma é lindo. Teu texto sobre David amor e amizade é comovente e delicado. Beijo

  4. Sandra says:

    Tá puro sentimento querida Mari. Lindo texto, longo como disseste, mas tão fluido e denso que não dava pra parar de ler. Um grande beijo aqui de pertinho! Hasta el lunes!!

  5. Juliana says:

    O magrinha !!!! Tão lindo esse amor e a amizade de vocês . Com certeza essa conexão não termina aqui . Paz no seu coração amiga . Amo você . Ju

  6. Isabela Fogaça says:

    Te imagino inteirinha com este texto. Chorei junto é claro. E aprendi mais um pouquinho desse David que só o mundo jornalístico conheceu. Mesmo sabendo da generosidade dele com a gente tb. Um dos caras mais bacanas que convivemos. Sempre com palavras certeiras e fortes. Este mês de março fui convidada a dar uma entrevista na rádio gaúcha , e me passaram a pauta dizendo que um dos entrevistadores seria o David. Foi pura felicidade. Seria minha primeira entrevista “de cantora “ com o David Coimbra ! Não que eu não gostasse dos outros , mas com ele seria como falar com um ídolo sabe… enfim. Não foi com ele. Ficou me devendo essa. Vou cobrar lá em cima quando eu me encontrar c ele. Podes crer.

  7. Alcimir Richter says:

    Meu amor
    Não consigo nem imaginar como te sentes, eu que não conheci pessoalmente, mas me sentia perto pois a escrita nos aproxima.
    Solucei com QUANDO QUIS MORRER , e chorei com todas as homenagens. Choro agora com esse teu texto verdadeiro “Magrela”. Tiveste um grande privilégio. Assim como ele me apresentaste a esse mundo da escrita. Aproveita aí com teu amigo. TE AMO ❤️.

  8. Livia says:

    Teus textos são sempre lindos
    Aproveita a Espanha , e a vida , que como dizia teu amigo David , é boa !
    Apesar de tudo sim a vida é boa
    Bj Mari

  9. Thaïs Bezerra says:

    Mari prima amada e colega jornalista. Que texto emocionante sobre seu editor e amigo que partiu…
    Tão forte, tão sincero, tão belo, com detalhes tão incríveis, que parece que eu o conhecia…
    A amizade é uma centelha de luz na vida da gente!
    Aracaju sempre lhe espera de braços abertos na TB House. Bjoka amo você!♥️
    Força e fé! Que ele esteja em paz!

  10. Tanise says:

    Amiga, como tu és especial! Que sorte a dos que te tem por perto, como o David teve por tanto tempo. Naquela época, eu Amava tuas visitas na redação da tv (eram às sextas?) para gravar alguma chamada. Saudade da gente juntas, mas que bom que estamos sempre uma no coração da outra. Lindo mais este teu texto!!!

  11. Tanise Dutra says:

    Amiga, como tu és especial! Que sorte a dos que te tem por perto, como o David teve por tanto tempo. Naquela época, eu Amava tuas visitas na redação da tv (eram às sextas?) para gravar alguma chamada. Saudade da gente juntas, mas que bom que estamos sempre uma no coração da outra. Lindo mais este teu texto!!!

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