Contar exclusivamente com a própria presença é revelador. Com ela, encarar o desconhecido e incontrolável é tanto prazeroso quanto dolorido. Fui diagnosticada recentemente com TDAH, além de tântrica em ebulição e contadora de histórias profissional, amo arte e gosto de gente. Sou simples e complexa no mesmo dia. E nesses mesmos dias, também deixo escapar as horas, elas escorregam do meu relógio imaginário, a lá Salvador Dali, diz “mi madre”. Meu apetite, como a minha criatividade, somem e voltam vorazes. Nunca avisam. Sou faminta mesmo pelo que não se pode comer. Filha de Iemanjá autoditada. Adentro, me jogo, experimento, mergulho, do caldo me esfolo na areia sólida, fujo e respingo. Não resisto mas não paro de nadar. Minha turma é do aMAR. Danço, rio, grito, tenho sede, nunca tédio. Sinto aflição, medo não. Coragem me sobra, preciso de calma. Respeito o mar e o ar. Só aviões grandes levam meu corpo para voar de verdade. Já a mente… Nos meus voos comerciais nunca tive turbulências… as viagens emocionais, que não parcelo no cartão e me meto sem convites já bastam. Me cansam, mas sacodem. Dor e delícia. Calmaria não faz boa marinheira (vai nessa…), tenho bóias em dia e anjos da guarda exaustos. O passaporte particular está para lá de carimbado. Mulheres selvagens domam suas asas, finalizam seus voos e domesticam suas águas. Deixam-se escorrer divinas e criativas entre marolas serenas e maremotos perigosos. Dona Dedé não me chamou de cavalo selvagem aos 20 e poucos anos? Só ouvia mesmo o Fabio Jr., mas incorporei a ÉGUA, somos todas feministas no feminino. As mães são sempre culpadas mesmo, além de donas da razão. Olé Iemanjá!

Fui à Espanha, encontrei e me hospedei com amigas alguns dias, mas 70% do tempo estava só, incomum e cada vez mais sedutor para mim. Troquei direções, metrôs e planos. Errei ruas, engoli certezas, voltei atrás, corri na frente. Achei recados e expos incríveis. Anotei, registrei, confundi, escrevi para nunca mais esquecer. Conversei com as cores, flores, falei sozinha, com o sol, a lua, com mortos e artistas. Soltei palavras, não abracei árvores por falta de tempo e de uma que me atraísse o suficiente. Sempre apressada, fui Mariana estilo franciscana. Imaginei como eram as vidas de pessoas desoladas em sacadas espanholas de chambres gelados e metros quadrados viscerais e vazios. Mas como tu sabe? Não sei nada. IMAGINO… Mulheres ansiosas e tabagistas roendo unhas. Velhos sozinhos e pacientes. Jovens impacientes quietos. Gente feliz, gente confusa, gente agitada, gente só sendo. Crianças brincando. O tempo passando. Quero me juntar. Sentir igual. Ouvir, ver, observar, falar, falar, falar, trocar, registrar, compartilhar. Tudo que pode fazer a roda coletiva girar, os círculos, os ciclos, os centros. Me movo em equilíbrio. Nem sempre.

Tudo me hipnotizou e sugou minha atenção nesses dias. O tantra ensina a continuar deslumbrada vivendo e a parar de viver deslumbrada. Voltar à Espanha depois de 23 anos foi um convite inadiável que recebi do destino para assistir meu espetáculo: um monólogo produzido e escrito por mim. Protagonizei, dirigi, errei as falas, me esgoelei no camarim, troquei papeis, vesti fantasias, transformei mocinhos em vilões, fiz espacatos sem fim e ressuscitei dançando… Sete atos porque amo o 7. E amar me basta para viver. Só amar? Nunca uma coisa só. Cantei alto demais, baixei a cabeça, fiz serelepices, agradeci sempre, calei, perdi a voz em círculos tão monótonos como curadores. Girei, girei, girei. Rápida, mas minha cabeça nunca conseguiu me acompanhar né, Tia Lenita? Do chão ninguém passa, aprendi contigo no linóleo da vida. Saio trêmula das coxias que me enfio e estou sempre contando os dias para subir ao palco. Brava! Exuberante ou distraída. Maquiada ou inteira. Também sou plateia entediada, crítica implacável, público animado, o teatro, a porteira e o melhor descobri há bem pouco: não tem final. Nem feliz e nem triste. O show tem que continuar, canta Alcione, a gente samba. Na Calle Gallo, 23, fui recebida lindamente pelas minhas dores, cores e amores. Inquietei e agitei a alma exatamente no mesmo instante. Que novidade… Como se age no singular sendo tão plural? É inútil brigar com o que é. Aceito o que não muda enquanto mudo o que não aceito. Queimo o arroz, mas sinto que encontrei os ingredientes para preparar com talento e fogo brando minha essência. Receita tão diária como deve ser o sono. Haja ”estrutura” na panela sustentar tanta “vida líquida”.

Viver não é pular de férias em férias para ser feliz. Inspirar e respirar o mundo e as pessoas com nossa presença decide o placar existencial. A felicidade só existe online. Na vida real, não está à venda que nem botox em potinhos cósmicos e agulhadas milagrosas. Aliás, é o excesso de procedimentos que nos transforma em jacarés, viu gurias? Extremos e generalizações escondem sempre nossas ignorâncias. Perder-se fazendo turismo é bom.  Diariamente é um saco. As idas viram labirintos e as voltas são incertas. Parei de ceder às ruelas charmosas e decidi repetir sempre a mesma rota para não me perder toda a hora e para usar melhor o tempo que ainda tinha na Espanha. Dei meu jeito. Uns chamam de estratégia, plano ou método. De mapa, bloco, caneta e celular entre mãos e bolsos. Óculos de sol brigando com o de grau no meu emaranhado de colares, sutiãs e blusas… Às vezes cargosa, noutras leviana. O tantra é não-dual. Eu? Uma dualidade ambulante, emocionada e colorida, buscando equilíbrio sob pernas longas e incansáveis. Nem habitando a mais abundante das vidas e tampouco à bordo do último Iphone, movimentações flutuantes ou pausas sabáticas eternas vão ajustar nossa mira para o melhor. Além de um pedaço inteiro do meu chakra cardíaco, deixei em Sevilha meu tapete mágico, mais especificamente na Ponte de Isabel, que leva a Triana. Com um bilhete em português para quem o encontrasse. Nada ainda… na próxima ida, deixarei bilhetes em garrafas pelas águas sevilhanas. Aliás, no fim da minha temporada andaluza, virei “gitana trianera”. É assim…. O tempo ensina, erra quem faz, se perde quem vai, quem procura acha. Caminhar viva é mais auspicioso do que fazer turismo e se eu não estivesse tão íntima de mim e distraidamente preparada para esse momento desde o tempo em que desenhava bonecas com saias vermelhas e blusas amarelas, teria certeza de habitar uma realidade paralela. A mesma impulsividade que me encanta é a que me dilui. Mas já que tudo aconteceu – até então – conforme o inesperado, não deu tempo de aprender e de dançar Flamenco, definitivamente, neste caso não nasci só para assistir. Troquei uma mala roxa por uma verde e “Estoy Aquí…” Inspirada pela Shakira e com rebolado afiado.     

Amor & tantra,

Mariana Bertolucci                      

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  1. Ana Cristina Maisonnave says:

    Ai que maravilha Mari! Quanta intensidade, que mente que fervilha! Gipsy woman, encantadora e encantada com a vida , o que é mais importante… tu atravessas a vida de uma maneira muito autêntica e teus relatos são muito ricos. Te adoro Mari! Que alegria conocerte ⭐️

    1. Góia Tellechea Cairoli says:

      Mariana querida
      Adoro teus textos, tua forma intensa de viver e escrever!!
      Teus anjos tiveram trabalho nesta andança pela Espanha, mas devem ter adorado as descobertas e experiências!!
      Besitos

  2. Balala Campos says:

    Que texto, minha amiga. Com estilo, profundidade, criatividade. Sou tua fã, és um talento extraordinario e única. Beijo enorme . Avante …

    1. Alvaro Franco says:

      Bah…Mariana, quanta coisa pra contar, sentimentos compartilhar, da tua alma mostrar. Segue este caminho, escrever com e sem floreio, que chamo de jeitinho, só pra rimar, pois na verdade é um jeitão, te amo de montão.

  3. Alcimir Richter says:

    Linda confissão querida amiga.
    Nos sentimos juntos ajudando esses anjos exaustos, na riqueza do relato, nos conduzindo a esses momentos de liberdade e reflexão.
    Obrigado por compartilhar.
    Bj grande no coração

      1. Ana Emília Piccoli says:

        Obrigada por compartilhar! Te senti mto vibrante e impulsiva ( uma característica do TDA , assim como a criatividade ) . Viva a vida e a Espanha!! Olé!!

  4. Titha Kraemer says:

    Maria amada! Quanta energia! Que coisa linda! Que privilégio te conhecer e vivenciarmos juntas tantos momentos significativos, seja densos, profundos, sensíveis ou com muitas gargalhadas. Te adoro!

  5. Sandra Pecis says:

    Linda essa energia que transborda pra mim que tenho a sorte de ser tua amiga. Te cuida muito!!! ❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️

  6. Andrea Perna says:

    Mari amada! Escreves de maneira que tuas emoções contagiam e fazem com que eu me sinta no teu lugar vivenciando tuas experiências.
    Amo ler o que escreves!!!
    Te adoro guria!!!

    1. Ana Emília Piccoli says:

      Obrigada por compartilhar! Te senti mto vibrante e impulsiva ( uma característica do TDA , assim como a criatividade ) . Viva a vida e a Espanha!! Olé!!

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