verdades verdadeiras

Há bem pouco tempo, a Antônia, me olhou com a força dos regidos de escorpião e disse: “Contra os fatos, não há argumentos”. Na hora eu ri dessa frase inesperada da minha filha. Hoje complementaria com outro clichê: “para toda história há a minha verdade, a sua verdade e a verdade verdadeira”. Essa última nunca foi tão escancarada e incontestável, desde que o smartphone entrou em nossas vidas. E com a ilusão de somente facilitá-las, nos deixou mais dependentes, insatisfeitos, competitivos e até agressivos. Transformando-nos em membros reféns e fanáticos desse imenso hospício digital, do qual a grande maioria de nós faz parte.

Há 10 dias, João Alberto Silveira Freitas foi assassinado por dois seguranças terceirizados da Rede Carrefour, em Porto Alegre. Vamos aos fatos.

O conflito começou quando a vítima disse algo e fez um gesto para uma das atendentes do mercado. Ela chamou os seguranças, Magno Braz Borges e Giovane Gaspar da Silva, que conduziram Beto até a saída do estabelecimento. No caminho, ele deu um soco no rosto de um deles. Começou a briga e durante os minutos seguintes, o cliente do hipermercado foi espancado e asfixiado até morrer no local. Está tudo filmado por alguém que passava na hora. Não peguei essas informações de qualquer jeito pela internet ou recebi vídeos manipulados pelo WhatsApp. Vi com os meus dois olhos. E você também. Ele pediu ajuda para a mulher, Milena, mas ela não conseguiu ajudá-lo. Uma funcionária do Carrefour tentou ameaçar (em vão) a pessoa que filmava as cenas brutais e inadmissíveis que deixaram boa parte do país estarrecido. A ficha judicial de Beto não era limpa. Ele tinha antecedentes criminais por violência doméstica, ameaça e porte ilegal de arma. O primeiro resultado da necropsia realizada pela perícia indicou que ele morreu por asfixia. Milhares de pessoas foram às ruas pedir justiça para João Alberto em todo o Brasil. As manifestações pacíficas atraíram vândalos e arruaceiros que mancharam e desviaram a importância dessa causa essencial para nossa sociedade evoluir com mais igualdade. Com alguma dignidade.

Vamos às verdades verdadeiras. Incontestáveis, definitivas e nítidas aos nossos olhos. Independente da sua vontade, religião, cor, ideologia ou poder aquisitivo, tais verdades nascem e se eternizam no mesmo lugar: aí no seu smartphone. Mesmo que a motivação do crime e dos exageros fatais por parte dos seguranças não tenha sido o racismo, é inegável a existência cada vez mais intolerante do preconceito racial, de gênero, de poder econômico e de orientação sexual entre nós.

É I-N-E-G-Á-V-E-L. Nós sabemos disso, muitas vezes, mesmo que envergonhados e calados, também sentimos isso. Porque estamos todos juntos sobrevivendo por aqui, dividindo os mesmos espaços, vendo as mesmas notícias, indo aos mesmos supermercados, cruzando com pessoas grosseiras e desequilibradas, pegando os mesmos elevadores e respirando o mesmo ar. Somos mulheres e já baixamos muitas vezes nossas cabeças para atitudes e gestos vulgares vindos dos homens, gostamos de pessoas do mesmo sexo que nós e isso, à beira de 2021, ainda atrai olhares homofóbicos e ameaçadores. Não temos dinheiro, poder e status e isso faz com não sejamos tão úteis e interessantes aos olhos de quem tem ou almeja ter dinheiro, poder e status. Obviamente estou generalizando, sou uma eterna Pollyana e acho que os bons são a maioria, mas pense comigo e com você, tem alguma verdade que não é verdadeira escrita aí acima?

Então, se você ainda está me lendo, e provavelmente também é branco como eu, há de concordar que infelizmente sabemos bem sobre tudo isso. Porque nunca fomos coagidos a entrar em elevadores de serviço conforme as regras dos prédios. Nunca precisamos dizer para nossos filhos, que na dúvida, eles não devem trocar palavras ou olhares com policiais e, sim, afastarem-se deles sem chamar atenção. Também não precisamos convencer nossas filhas e netas de que seus cabelos, narizes e bocas são lindos do jeito que são e que isso não é motivo para tristeza ou para ficar sozinha no recreio. Você já foi chamado de macaco depois de fazer um gol ou de tomar um frango em rede nacional? Já viu alguém acelerar o passo na sua frente ou esconder o celular correndo na sua presença, como se você não estivesse percebendo? Já foi olhada de cima a baixo pela atendente de uma loja? Ou apresentada a uma sogra ou sogro que nunca dirigiu um sorriso mesmo que falso em sua direção? Você é seguido em supermercados?

Nada disso aconteceu com você, meu querido amigo e leitor branco? Que coincidência, pois comigo também não. Entendeu, agora, o que é o racismo estrutural? Que pode não ter sido a causa direta da morte do Beto, mas está bem aí, para quem quiser ver, entre nós, dentro de nós. Quase tão presente quanto o COVID-19 em nossas vidas hoje. Tudo isso vai muito além da sua opção de candidato neste domingo de eleições. É uma questão de humanidade. Você sabe bem disso, mas talvez seja mais fácil enfileirar culpados e sistemas falidos e colocar tudo no mesmo saco. Não é certo, não é possível e não é humano assistirmos omissos a brutalidade. Desconstruir essas verdades verdadeiras com mais preconceito e teses baratas e cretinas de esquerda e direita é ser cúmplice da injustiça e da barbárie. Eu escrevo e assino embaixo que eu não sou. E, você?

Então, se tenho ficha suja, tenho que sair sem vida de dentro de um supermercado? Tenho que levar soco e chute? O mercado não é um tribunal. Não temos pena de morte no Brasil. As pessoas querem culpá-lo por sua própria morte. Se alguém me seguir dentro do supermercado, vou ficar furiosa também. Isso acontece direto comigo em shoppings, principalmente se estou mal vestida.”

Thais Freitas, filha de João Alberto, em depoimento para GaúchaZH.

Por Mariana Bertolucci

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  1. Vera says:

    Mariana tenho na minha família pessoas negras!! E já presenciei atos de racismo numa loja famosa, no Iguatemi, numa rede também conhecida, de material de construção, com essa pessoa da minha família!! Entre outros, é claro!! É tudo muito triste e inaceitável!!

  2. Lize Jung says:

    Excelente texto como sempre Mari!!! Sim, injustificável toda essa violência. Pra qúê tudo isso? As pessoas estão cada vez mais loucas, egoístas, são mal educadas no trânsito, estão de mal com a vida, com tudo e com todos… precisamos reagir e tentar um futuro e um mundo melhor para os nossos filhos… dias muito difíceis.

  3. Alcimir Richter says:

    Lastimável e injustificável.
    A filha está coberta de razão. Não foi um crime racial aparentemente, mas na essência da condução da violência de como foi tratada a situação criada.
    Repetindo: LASTIMÁVEL & INJUSTIFICÁVEL

  4. Fi says:

    É isso mesmo, Mari! Só tenho uma ressalva: o racismo não está “quase tão presente quanto à Covid em nossas vidas hoje”, ele é MUITO MAIS PRESENTE. Apenas agora está sendo filmado e replicado pelos nossos smartphones.
    Beijo

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