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Se existe céu ou algum outro lugar onde ele foi estrear, um dia quero estar lá

Bá experiência por Diogo Zanella/Estúdio Telescópio

O ano era 2014. Eu e meu marido, Rodrigo, compramos ingressos para o espetáculo 220 Volts, do Paulo Gustavo, no Teatro do Bourbon Country, em Porto Alegre. Havia sessão na sexta e no sábado. Optamos pelo sábado.

Saímos de casa cedo. Estava tudo tranquilo quando chegamos, deu até para tomar uma taça de espumante antes de entrar. Ou seja, sucesso.

Apresentamos os ingressos, subimos as escadas de acesso à plateia alta, identificamos o corredor e o número dos nossos assentos e sentamos. Minutos depois, fomos interrompidos por uma moça e o seu namorado.

“Oi, desculpa, mas… esses são os nossos lugares”.

Teríamos errado o corredor? O número das cadeiras? Ingressos checados e, pimba, tudo certo. Assentos corretos. Só nos restava pedir, educadamente, que eles verificassem onde ficavam suas poltronas, pois aquelas eram nossas, e fim de papo. Eles verificaram. E constataram que tinham a mesma letra e os mesmos números em seus tickets. O que, então, havia acontecido?

“Sou muito fã dele, desculpe, não posso perder o show”, disse a moça.

Eu e Rodrigo, claro, ficamos um tanto quanto desconfortáveis. Mas, comparado à expressão dela, parecíamos tranquilos. De qualquer forma, havíamos chegado primeiro, portanto nossos lugares estavam garantidos. Sorte nossa, azar deles. O impasse, porém, precisava ser resolvido. Bora descer as escadas e averiguar.

Desci com a moça para resolver a questão. Ao voltar, nossas expressões tinham mudado: o rosto dela estava mais feliz, aliviado. Já o meu, mais pálido e decepcionado. 

Eu e Rodrigo tínhamos ingressos para o dia anterior. Sim, fomos na data errada. E era o último dia, a última sessão. A última oportunidade. Bateu o desespero. Pedimos desculpas e descemos. Arrasados.

Passamos pela integrante da produção que, minutos antes, identificou o nosso equívoco. Perguntei a ela, desesperançoso, se algo poderia ser feito. E não é que aquela boa alma disse que sim?

Fomos conduzidos novamente para a plateia alta. Ao lado da equipe técnica de som, de frente para o palco, sentamos em duas cadeiras cedidas pela produção. Aproveitamos, de um ângulo ainda melhor, o show do início ao fim, rindo como há muito não ríamos. Quando terminou, saímos rindo também da situação toda. De termos errado a data e, no fim, de tudo ter dado certo.

No dia 4 de maio de 2021 Paulo Gustavo morreu. Imediatamente, lembrei do dia em que eu e Rodrigo fomos ao teatro assistir ao 220 Volts. E ri. Como um ato de resistência.

“Eu faço palhaçada, você ri, eu fico com o coração preenchido aqui. Eu me sinto realizado de estar conseguindo te fazer feliz. Rir é um ato de resistência”, disse ele em uma de suas últimas aparições na televisão.

Paulo Gustavo era luz. No filme Minha Mãe é Uma peça 3, dona Hermínia fala ao Juliano, seu filho, no dia do casamento dele, que era muito bonito o que ele estava fazendo. Que ele estava seguindo o caminho do amor. E que isso ia inspirar muita gente. De alguma forma, me inspirou. Em 2018 casei com Rodrigo.

Antes da bestialidade de se politizar uma emergência de saúde mundial, como foi a pandemia de covid-19, Paulo Gustavo era quase uma unanimidade. Quase todos gostavam dele, um homem gay que, através de sua arte, fazia do mundo um lugar melhor e mais tolerante. Como disse seu amigo no documentário Filho da Mãe, imagina quanta obra viria, nas quais Paulo Gustavo abordaria, por meio da genialidade e do seu humor, o crescimento dos seus filhos em uma família homoafetiva.

No dia 4 de maio de 2006, estreava Minha Mãe é Uma Peça. 15 anos depois, perto do horário da estreia desse espetáculo, ele morrera. Dona Déa, sua mãe, diz que a partida dele foi também em um 4 de maio porque era a hora de ele estrear em algum outro lugar.

Se existe céu ou algum outro lugar onde ele foi estrear, um dia quero estar lá para vê-lo novamente brilhar no palco. E prometo, dessa vez, não errar a data do ingresso.

No podcast Bá que papo desta semana, falamos sobre os dois anos da perda de Paulo Gustavo e também discutimos se a homenagem ao estilista Karl Lagerfeld no MET Gala foi acertada ou não. Ouça agora o episódio no Spotify clicando aqui. Para ler outros textos da coluna Bá experiência, acesse este link.

Bá experiência por Diogo Zanella/Estúdio Telescópio

Foto: reprodução

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  1. Telmo Reis says:

    Provável que tenhamos visto mais de uma centena de apresentações de Paulo Gustavo. Filmes, espetáculos, entrevistas. Em tudo, arte da excelência, perfeição.
    Admirado e amando como poucos.
    Parabéns ao Ba’ e a Diogo Zanella.

  2. Lica Tito says:

    Emocionei aqui, ainda mais agora que voltamos a ser uma nação com Ministério da Cultura. Isso nos lembra a importância da arte nas nossas vidas! Obrigada por estar sempre compartilhas arte conosco 💛

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