Pensando sobre o feriado desta semana nos pagos gaúchos, quis compartilhar sensações contraditórias da gaúcha e porto-alegrense da gema que sou com sangue serrano e sergipano correndo nas veias. Identificada, orgulhosa, bairrista. Daquelas que não sabe se gosta mais da sensação deliciosa de sair do lugar onde nasceu para conhecer os tantos outros incríveis que existem por aí ou de sempre pousar aconchegada no Salgado Filho, para pisar saudosa no meu canto no planeta. Aqui encontro boa parte das minhas pessoas preferidas, passo por ruas onde tropeço nas  minhas histórias e posso até sentir os mesmos cheiros, sabores, retribuindo sorrisos e cumplicidades de uma vida no lugar onde nasci, cresci e escolhi viver. O lugar da gente é como aquele parente que nos tira sempre do sério. Nós podemos falar mal deles, ninguém mais.

Não vou entrar nos detalhes igualmente repletos de dualidades da Revolução Farroupilha, que deu origem ao 20 de Setembro, porque sou jornalista e não historiadora. Aliás, modéstia à parte, duas preciosas e necessárias carreiras que têm sido achincalhadas e desrespeitadas como nunca. Exaltar a data comemorativa e o espírito aguerrido do povo gaúcho fortaleceu nossa cultura e tradição, o que me agrada porque é justamente a diversidade dos hábitos, das roupas, danças, gastronomia e costumes típicos que faz do nosso país um coletivo tão plural, colorido e criativo de infinitos Brasis.

No entanto, muitas das crenças cultivadas e perpetuadas sobre nós por nós mesmos ao longo de quase dois séculos, além de não me representar, não me agradam como gaúcha e muito menos fazem jus à essência dos brasileiros que habitam o extremo sul do país. Há uma rigidez cinzenta que enfraquece e esconde nossas virtudes e potências mais interessantes.

Viemos ao mundo com características genéticas das nossas famílias. Há 17 anos observando minha filha bebê em cima da cama dos meus pais percebi que todo o ser humano é uma inédita e exclusiva colcha de retalhos. Somos colagens delicadas e humanas perfeitas de tiragem única. O formato da unha de uma, a textura do cabelo do outro, o olhinho puxado da beltrana ou o jeito atrevido da fulana. Quando temos a sorte de crescer em uma família que além nos garantir conforto e cuidados essenciais para tornarmo-nos pessoas saudáveis, seguras e bem nutridas é bebendo na fonte dos valores deste mesmo núcleo familiar (biológico ou não) e das escolhas que eles fizeram por nós ao longo do nosso desenvolvimento que seguimos formando nossa personalidade, entendendo nossas verdades, incertezas, valores… Vamos moldando o nosso ”jeitão”. Crianças são esponjas, dizem… Logo na primeira infância é a cultura que permeia e assume o papel fundamental de costurar e entrelaçar ideias e sentimentos profundos da nossa colcha de retalhos particular. Como bem diz o romancista e ensaísta francês André Maurois: “Cultura é o que fica depois de se esquecer tudo o que foi aprendido”.

É louvável nos sentirmos lisonjeados com a coragem e valentia habituais com as quais defendemos ao longo da história direitos individuais ou coletivos por aqui. Abraçamos causas com fervor. Não é exclusividade nossa, mas somos mesmos uma gente decidida. Mesmo sem ter sido muito adepta ao hábito diário do chimarrão e que eu mal lembre da dança do pezinho, acho bacana cultivarmos nos CTGs o tradicionalismo vestidas de prenda, usando bombachas fartas em rodas de mate amargo e gineteadas sem fim nos esbaldando nos carreteiros de charque e pinhões deliciosos. Até aí, tudo lindo e muito gostoso.

Se nosso senso de justiça e igualdade esbarrar em preconceitos enraizados perdem o sentido. Competitividade é saudável, mas não vale acelerar bem na hora que o vizinho pede passagem. É bonito exaltar tradicionalismo, cultura e hábitos. Feio é oprimir e diminuir novos modelos familiares, gêneros e as mulheres. Para ser séria e comprometida não é preciso ser sisuda ou blasé. Elegância e requinte não estão apenas em botas, joias e roupas de couro. Vão bem além do que o espelho é capaz de mostrar. A frieza é restrita aos termômetros gelados do inverno, não deixemos que invada nosso bom humor. Ter opinião não é sinônimo de indelicadeza. Ser batalhadora não é ser perfeita. Gente inteligente não precisa ser antipática, sem riso, sem borogodó. Não é porque não nascemos com samba no pé que temos vergonha de rebolar. Somos decididas e idealistas, não desconfiadas, definitivas e inflexíveis. A competência não vem embalada pela chatice. Nos achamos gloriosos mas gostamos de ir ao teatro no Rio ou pagar por restaurantes caros em São Paulo. Estamos distantes, nunca deixamos de fazer parte. A beleza das nossas lutas não nos faz melhores. Ser “macho” é ser leal a si. Colonização alemã e italiana não significa nada além de “colonização alemã e italiana”. Brincamos por aqui que não somos grosseiros, somos enfáticos. Já virou inclusive campanha publicitária de marca de cerveja. Ahhh, mas isso é folclore, dirão os enfáticos afiados de plantão. É sim, puro folclore do gauchismo tóxico. Sem dúvida, mas que desequilibra o ego dos distraídos… Ahhh, disso também não tenho dúvida.

Fazer as pazes com a ancestralidade é a mais poderosa transformação. Tão gaudério como freudiano, o paradoxo é criticar os modos e os costumes que já não nos servem com amor, coragem, humildade e aí sim e sentir orgulho das nossas raízes mais bonitas e inspiradoras (são tantas…) Sou prolixa, mas eu queria dizer de verdade é que nenhum povo, cultura ou ser humano deve se apegar às versões anteriores de si. Está bem aí a real batalha que precisamos vencer todos os dias. É a vulnerabilidade a mais poderosa das revoluções.

Não te mixa, tchê! Não tá morto quem peleia

Com amor & orgulho,

Mariana Bertolucci

CategoriasSem categoria

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.