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Crônica: Lânguida liberdade

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Créditos: Heloisa Medeiros

Como onda do mar, que cada vez encontra de um jeito a areia, sensações também vão se transformando dentro de nós. Segundo o dicionário, liberdade é o direito de agir segundo o seu livre arbítrio, de acordo com a própria vontade, desde que não prejudique outra pessoa — é a sensação de estar livre e não depender de ninguém.

Quando criança, liberdade era andar de bicicleta na praia ou pular da plataforma, caminhar sozinha e descalça para comprar picolé nas ruas de Gramado ou no bairro onde passei a infância, a Assunção. Subir em árvore, no telhado, brincar, inventar e dançar. Uma infância que quase não existe mais nas cidades grandes — e nem nas pequenas. Não tinha assédio, nem assalto, e só o que nos assustava nas ruas eram os cachorros mais bravos latindo. Quase sempre eram os Dobermanns, que também não existem mais.

Adolescente: nada pode ser mais libertador do que sair do controle e dos olhares quase sempre permanentes dos pais. Se fosse à noite, sem rumo e rodeado de amigos, melhor ainda. Para mim, também tinha a cara de uma personagem de novela interpretada pela Malu Mader, a Glorinha da Abolição. Quanto mais rasgados eram os meus jeans, mais pulseiras eu tinha amarradas nos pulsos e calcanhares e mais lenços, coletes, penas e penduricos que eu conseguisse levar para passear no meu corpo, mais livre eu me sentia. Mergulhar, gargalhar, fazer capoeira, fumar, cambalear e dançar.

Com a carteira de motorista, a liberdade vinha em formato de um carro sem destino, com som bem alto e com aquela amiga de fé que estava sempre ao seu lado, sentindo o vento bater no rosto. Conversar, escrever, discordar, aprender, responder, lamentar e dançar.  

Formada jornalista, ser livre era não ter plantão aos domingos e chegar em casa na hora que desse vontade (eu já morava sozinha). Ser mãe, para mim, foi libertador, porque era um desejo desde sempre. Quando realizei, me senti forte, além de bastante confusa e permanentemente culpada. A cada dia desde então, tento me tornar uma pessoa melhor para dar bons exemplos e explicar como é e o que faz um sujeito bacana para si, para os outros e para o mundo. Eu falho toda a hora nesse processo e, hoje, percebo que dar limites e conversar com paciência e bom senso com os filhos é desesperadoramente mais complexo do que virar noites entre fraldas, vômitos e viroses.

Não me imagino deixando cabelos crescer nas axilas e nas pernas, mas me incomodam, de verdade, as pessoas cheias de opiniões e certezas (e olha que eu nasci com opinião para tudo, como dizia um ex-namorado) sobre onde devem ou não crescer os pelos dos outros. Isso, na minha humilde e incansável opinião, vale para tudo relacionado ao outro. É a velha frase atribuída por muitas pessoas ao filósofo inglês Herbert Spencer que virou ditado: A liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro”.

Liberdade, então, não é mais mergulhar nua na cachoeira, voar de asa-delta, chegar em casa a hora que quiser, pisar na areia, acelerar o carro sem destino, ir de peito de fora na passeata ou mesmo aquele “dia” que os filhos (e/ou os pais) não estão em casa. Isso é viver com criatividade, ousadia, perto da natureza, desfrutar da solidão, sempre com alguma emoção (que vamos combinar nunca é demais).

Quanto mais livres somos para controlar nosso destino, mais espaço a ansiedade encontra dentro de nós e mais nos tornamos reféns da nossa própria liberdade. O segredo, talvez, não seja declarar uma guerra explícita entre essa contraditória dupla confrontante, mas, quem sabe, conhecer e saber acessar com facilidade e na prática um lugar precioso onde fica uma lânguida caixinha imaginária em que mora na nossa alma. É lá que vamos colocar com sabedoria e delicadeza um tantinho da ansiedade natural e diária. Todos os dias, o quanto antes você conseguir, para que, no restante das 24h que nos sobrarem, possamos trabalhar, criar, namorar, trocar, rir, ler, aprender, fazer trilhas, viajar, crescer, mudar e sempre dançar.

Por Mariana Bertolucci

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