Por Laerte Coutinho

Laerte é cartunista e ilustradora. Entrevista feita em 2015 pela jornalista e escritora Angélica Kalil e que está no livro Você é feminista e não sabe, de sua autoria e da ilustradora Mariamma Fonseca. Confira.

O que nos define como mulher ou como homem? Nada. O que você quer que defina? Genitálias? (risos)

Acho que não. Não, também não.

Eu fiz essa pergunta, porque quanto mais eu penso, menos eu chego a uma resposta. Mas é isso, a gente está vivendo a aproximação deste momento em que a gente vai chegar à conclusão de que realmente não existe. O Dráuzio Varella outro dia publicou um artigo muito interessante, “O sexo redefinido”, em que ele mostra as últimas constatações da genética, onde se percebe que há um grande ente de distribuição das combinações possíveis de XY – e nem no sexo biológico existe esta bipolaridade tão clara assim. Há um grande ente mesmo. O fato é que forçar a barra na bipolaridade foi uma criação das sociedades humanas em nome de uma coisa que não tem nada a ver com a natureza.

O que mudou na sua percepção da vida depois que você começou a ver o mundo a partir de um olhar feminino? Não mudou muita coisa, porque eu acredito que homens e mulheres olhem o mundo de forma muito parecida, que é uma maneira organizada por uma cultura. Esta cultura, embora ela defina o que são comportamentos, roupas, atitudes e, até mesmo, ideias e sentimentos para homens e para mulheres, ela não chega a definir os olhares interiores, vamos dizer assim. Eu estou em um processo de transição que a visão de binarismo de gênero, a intolerância e a cultura da violência.  Eu não posso nem dizer “eu estou virando mulher, eu já virei, já fui”, put! O que isso mudou pra mim? Quase nada, francamente.

O gênero como resultado de uma imposição cultural é um dos temas da obra de Judith Butler. A filósofa norte-americana se debruça sobre questões como feminismo, política global e nossa relação com o corpo.

Esteve no Brasil pela primeira vez em 2015, enfrentando pequenos protestos por parte de grupos conservadores. Sua última passagem pelo país, em 2017, causou manifestações contrárias raivosas e numerosas – o que nos mostra o quanto nossa sociedade tem dificuldades em desconstruir

Tudo que está ligado à mulher parece que é menos, não? Nesse modo de ver as coisas ser homem é uma espécie de prêmio de Deus, ah, eu sou um homem (risos)! Não só na nossa cultura. É conhecida a colocação tradicional do judaísmo ou do islamismo que ser homem é uma espécie de benção de Deus – que bom, agradeço a Deus, porque me fez nascer homem, que é muito melhor, segundo essa visão. Mas não é.

Tem mais privilégios… São sociedades que se organizaram para que a vida dos homens ficasse mais fácil…mas não é mais fácil! Quem diz que o patriarcalismo torna a vida dos homens mais fácil está meio enganado. Homens morrem muito mais, homens são presos muito mais, homens morrem mais cedo. São obrigados a carregar fardos incríveis, vão para a guerra, voltam neuróticos. Homens se fodem muito no machismo (risos)! Se eu fosse inventar uma coisa para proteger o meu sexo biológico, eu jamais inventaria o machismo!

O documentário The Mask You Live In (A máscara em que você vive), dirigdo pela norte-americana Jennifer Siebel Newsom, foi lançado em 2015. O filme mosra o quanto o machismo pode ter consequências dramáticas também para os homens.

Quando a gente se sente oprimido, consegue se colocar mais no lugar do outro? Me parece que no seu trabalho isso está mais forte. Tem duas coisas aí. Uma é a dinâmica do mundo. Quando eu comecei a me entender como trans e fazer este movimento, o mundo também estava fazendo este movimento de reivindicação, quer dizer, não fui eu que inventei isso. Eu cheguei, já estava (risos)! E eu me inseri em movimentos que já eram existentes e bastante fortes. Se eu entrei para ajudar ou não, é outra história. Então, há uma demanda. E eu gosto de militar em coisas, quando eu era comunista, eu fui do Partido Comunista. Eu militei também no meu ambiente profissional, fiz parte de associações profissionais de artistas gráficos, de cartunistas. Algum agito eu sempre fiz em função do que eu estava vivendo. E o que eu vivo hoje é muito intenso, é muito íntimo, é muito totalizante para mim. Por isso, talvez eu esteja indo de corpo inteiro.

Agora, pessoalmente, eu tenho bastante reserva em relação ao que eu faço enquanto um trabalho engajado. Eu sei que faço e eu sei que há momentos em que ele é necessário. Mas o trabalho engajado mesmo, de passar recado político, de convencer pessoas, eu acho que endurece o meu modo de me expressar, sabe, não é muito tranquilo para mim, não. Acho que às vezes o resultado é legal, gosto de ver quando funciona e tudo, mas eu prefiro soltar a franga, eu prefiro ser contraditória, eu prefiro não ter que estar prestando contas ideológicas o tempo inteiro. Porque é uma coisa que acontece, embora a gente diga que não e prefira pensar que não é assim que acontece.

Quando a gente está fazendo trabalhos engajados, a gente está com todos os radares ligados nas tábuas da lei (risos)! Como é que é isso? No que eu acredito? Que coisas eu preciso anunciar? Que coisas eu devo reforçar? O trabalho de charge política me aborrece por causa disso. Me aborrece no sentido de dar mais trabalho por causa disso, porque eu tenho que ficar com estas pautas todas aqui, pensando, medindo, analisando. Ao mesmo tempo, eu gosto de jogar solto, porque eu acho que é onde eu me expresso melhor.

Tem uma coisa bem filosófica cada vez mais forte nas suas criações. É. Certas verdades e certos dogmas dos movimentos muitas vezes precisam ser desafiados, precisam ser questionados. O que é essa liberdade que a gente quer? O que seria isso nos termos daquilo? Como tentar enxergar o mundo pelo olho daquela pessoa que é nossa adversária hoje? Esse olhar é totalmente nosso inimigo, quer nos destruir, ou tem algo ali que está nos faltando ver? Eu estou falando essas coisas bonitinhas, mas para mim também é difícil me pôr no olho do outro.

Você se considera feminista? Eu entendo o feminismo como uma das principais movimentações da humanidade em toda a história. Eu acho que o feminismo abriu a cabeça do ser humano para uma questão que é fundamental – como as coisas se organizam, como vêm sendo organizadas em torno de comportamentos, ideias, sentimentos e papéis para o que é entendido como gênero. E como isso é arbitrário, como isso é uma invenção. O feminismo, ao reivindicar direitos que estavam sendo negados e denunciar condições de opressão sobre a mulher, abriu as portas inclusive para o movimento LGBT, isso para mim é claríssimo. Sempre que tem um grupo de pessoas tentando uma abertura maior, parece que vem uma força contrária muito violenta.

Essas reações violentas se dão por quê? Por medo, provavelmente. Por que o movimento de reivindicação de direitos básicos de exercício de sexo ou de afeto – que não incomoda ninguém, que não está obrigando ninguém a nada – provoca um movimento contrário que quer obrigá-lo a não exisir? É difícil definir isso em poucas palavras, mas eu acho que é medo. Medo do que aquilo pode desencadear. As pessoas vivem e dependem muito de situações de controle: eu tenho a minha religião, eu tenho o meu emprego, eu tenho a minha família, eu tenho não sei o quê; eu dependo, para a minha felicidade, que tudo isso esteja funcionando bem, bem azeitado, os rolimãs girando e tal; não quero saber de igualdade, justiça social, estou pouco me fodendo quem mora ali, quem mora aqui, eu quero que o meu núcleo aqui ande. Então, qualquer coisa que ameace isto, ideias de justiça social, ideias de reorganização social, o socialismo, isso tudo tem que ser bombardeado: as pessoas têm que ser incineradas e essas ideias têm que ser picadas em pedacinhos, porque se não, o que fazer?

O Brasil é o país com maior número de assassinatos de pessoas LGBT no mundo, conforme dados divulgados em 2016 pela ONG Transgender Europe.

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