Por Ana Lúcia Keunecke

Ana Lúcia é advogada e fundadora da ONG Mulheres sem Violência. Entrevista feita por Angélica Kalil em 2016, que está no livro Você é feminista e não sabe, de sua autoria e da ilustradora Mariamma Fonseca. Confira.

O que é cultura do estupro? Eu acho que não dá para falar cultura do estupro, acho que dá para falar vivemos em um patriarcado. Quando a gente pensa no patriarcado como um lugar em que a ordem determinante e reinante é o masculino, o feminino está todo sob o poder, sob o controle disso. Então, é óbvio que a mulher não vai ter direito sobre o seu corpo, não vai ter direito de escolha dos seus processos reprodutivos e não vai ter direito a uma equidade de direitos nas relações comerciais, nas relações empresariais, nas relações educacionais. Tudo isso é o que a gente chama de cultura do estupro, é o resultado do patriarcado, do olhar da sociedade de que a mulher é um objeto e está à disposição. De onde remonta isso? Eu sou advogada, estava fazendo um estudo sobre a hierarquia das normas e vi a gente se distanciando do que era chamado direito alternativo ou common law, que é o direito que vai alterando as leis conforme os costumes e a jurisprudência. Foi com esse direito que nós conseguimos abarcar alguns tratados internacionais, que a gente conseguiu algumas grandes conquistas como o casamento homoafetivo, a adoção por casais homoafetivos, a mudança de nome e de gênero, o reconhecimento das famílias híbridas, o divórcio sem culpa, a guarda compartilhada, condenações por paternidade não exercida, o poder judiciário compreendendo que é preciso haver equidade nas relações familiares. Aí eu pensei no positivismo de Hans Kelsen, que é de onde vem o nosso direito, que é a norma coercitiva, é a norma que pune, é a norma pura. É o Estado detentor da norma para determinar como os seus cidadãos vão agir. O positivismo de Hans Kelsen, o que ele é senão o patriarcado? Senão a legitimação desse poder da força, desse poder do masculino? Ele não prevê o que está fora da ordem, o que está fora da caixinha. Estudando isso, eu pensei: caramba, é lá de trás que vem, né? Do direito canônico, do direito romano, sempre esse positivismo, o estado para poder regular a sociedade precisa manter a norma.

O patriarcado é um sistema social, cultural e econômico estruturado na supremacia do homem sobre a mulher. Embora este padrão esteja presente em praticamente todas as sociedades atuais, nem sempre foi assim.

Pesquisas arqueológicas estão revelando que antes deste modelo, que instaurou-se há cerca de 5 mil anos, as civilizações se formaram baseadas na parceria entre as duas metades da humanidade.

No livro O Cálice e a Espada (1989), da austríaca Riane Eilser, é possível entender melhor as origens do patriarcado.

E quem decide a norma? Sim, quem decide a norma? E como você vai controlar as questões femininas? Como você controla o tempo da gestação? Como você controla os períodos menstruais da mulher? Como você controla a fertilidade da mulher? Como você controla a criatividade, que é o feminino?

A libido da mulher… A libido da mulher. Isso tudo não cabe em um estado que é positivista. Então, eu acho que o positivismo de Hans Kelsen como forma de regular toda a sociedade é um legitimador do patriarcado, logo um legitimador dessa cultura do estupro. Até pouco tempo atrás, uma mulher que fosse estuprada e fosse na delegacia fazer a denúncia, além de todo o constrangimento que ela já passava, se o estuprador casasse com ela, a punibilidade estava extinta. O agressor, ele repara o quê? A honra. Mas a honra de quem? Dessa mulher? Não, dessa família, desse pai. Minha filha, quando viu minhas fotos de casamento, me perguntou: por que meu avô está te entregando para o meu pai? Por que você não foi sozinha? A gente ainda repete isso, um homem que cuida de uma mulher – a filha – entregando para um outro homem cuidar. Quando a gente faz essas coisas sem perceber, mesmo quem é ativista, quem é miliante, referenda e legitima essa cultura do estupro. A mulher não tem escolha, o homem faz com ela o que quiser. Quando eu fui estuprada, eu tinha 23 para 24 anos, pedi ajuda e não consegui. Eu estava com a perna quebrada e tinha saído com uma blusa curtinha, naquela época em que a gente usava calça cintura baixa, com a barriga aparecendo, então “a responsabilidade foi minha”. E aí, eu não encontrei apoio. Vim para São Paulo e a minha mãe me levou no médico – isso aconteceu em uma cidade do interior. Eu fiz todos os exames e durante dois anos, a cada seis meses, eu tinha que fazer exames de HIV, sífilis, de várias doenças. A cada seis meses eu tinha que me lembrar daquele dia. Estudante de direito que eu era, eu disse: eu vou processar, eu conheço quem me estuprou, não era um desconhecido, era um amigo que me deu carona. Eu fui procurar as formas de denunciar e eu fiquei chocada. Se roubam um carro meu na rua, eu vou na delegacia, eu faço um boletim de ocorrência e o Ministério Público entra com um processo contra quem foi o assaltante, porque o Estado foi violado em uma questão patrimonial. É a justiça pública que é a parte interessada. Quando eu fui denunciar, em 1998, o estupro não era assim. Ele passou a ser assim em 2011, há cinco anos. Só há apenas cinco anos a negativa de uma mulher em fazer sexo – que lhe rouba a vida, lhe rouba a sexualidade, lhe traz doenças, lhe traz marcas que ela não vai esquecer nunca mais – passou a ser um problema do Estado. Até então, ela tinha que ir lá e representar. Se as pessoas da minha confiança me julgaram, que cara eu tinha para voltar lá em uma cidade do interior, onde eu, vinda da capital, achava que tinha direito de sair, de beijar quem eu quisesse, de transar com quem eu quisesse?

Conforme números divulgados em novembro de 2016, cinco pessoas são estupradas por hora no Brasil. Os dados fazem parte do 10o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com informações coletadas em 2015. Os números devem ser bem maiores, já que o crime de estupro é o que apresenta maior taxa de subnotificação no mundo.

Essa cultura de culpar a vítima pela violência que ela sofre é superpatriarcal, né? É superpatriarcal e era abarcada pelo nosso sistema de leis! Deixou de ser em 2011! Eu fui estuprada em 1998. É muito tempo para o meu corpo não valer nada. Semana passada saiu uma pesquisa que demonstrou que cinco mulheres são estupradas por hora, com base nos dados oficiais.

Fora a subnotificação… Eu não denunciei e conheço muitas mulheres que não denunciaram. A mulher que é vítima de estupro dentro do casamento não denuncia, porque ela acha que é obrigada a fazer sexo.

Ela nem sabe que é um estupro. Ela não sabe e às vezes sabe, mas não tem força. E aí tem filhos, filhos gerados de uma violência, que vão nascer em um parto onde o controle é de um médico. É o médico quem vai controlar, porque o positivismo determina que eu quero que nasça a essa hora e, se você não me obedecer, você vai ser violentada, então eu te faço uma violência obstétrica.  Como é que fica isso? Onde existe a mulher como ser humano?

Participando de um documentário sobre cultura do estupro logo após o caso que aconteceu no Rio de Janeiro, a minha parte na entrevista começa assim: eu sofri duas violências, uma delas um abuso sexual aos 9 anos – e aí corta e aparece um desembargador. Ele fala assim: não existe abuso sexual contra criança, não existe figura de abuso sexual no nosso ordenamento jurídico, qualquer ato libidinoso contra menor de 14 anos, porque ele não tem o poder de consentir, é crime de estupro de vulnerável. Eu parei, olhei para o meu marido e falei: caramba, então eu fui estuprada duas vezes? A primeira aos 8 ou 9 anos, perto da idade da milha filha? Sim, eu fui. Como eu, ativista, podia falar abuso? Como eu, advogada, nunca tinha atentado para esta palavra? E foi tão forte para mim, isso foi esse ano, que legitimou toda a doença que eu tive, a síndrome do pânico, a depressão. Em algum lugar meu, eu achava que tinha um exagero pessoal, porque a mulher sempre exagera. Como com 42 anos você se lembra de uma coisa que aconteceu lá atrás e você não consegue sair na rua? Como você não consegue mais dirigir? Como você não consegue mais ter uma vida normal? Como você, que nunca tomou um remédio nos últimos anos, precisa tomar um remédio alopático que você sempre condenou, porque não dá conta de olhar a realidade do mundo? É obvio que tinha alguma coisa errada em mim.

Quando aquele juiz falou estupro de vulnerável, eu entendi. Ele legtimou toda a minha dor. E eu fui fazer um estudo sozinha. Procurei a Juliana de Faria, do Think Olga, porque eu passei aquela noite inteira lendo a campanha #MeuPrimeiroAssédio. E se você ler, não é meu primeiro assédio.

É meu primeiro estupro. Meu primeiro estupro. Vai mudar o arquétipo da grande mãe, vai mudar o arquétipo do feminino, isso não vai ser sustentável por mais 500 anos, isso vai mudar. Só que a gente vai ter um grande obstáculo para transpor, porque ninguém quer perder seus privilégios. Quando a gente fala de feminismo, quando a gente fala de acabar com a cultura do estupro, a gente fala de retirar privilégios. O pessoal fala: ah, mas a Maria da Penha traz privilégios… não, ela traz correção. Acabar com a cultura do estupro é entregar dignidade, é entregar equidade. Mas isso supõe perda de privilégios. E quem tem privilégios quer perder?

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