liberdade-cronica

Estamos, coletivamente, sofrendo de um mal que parecia não nos ameaçar mais. Além de estabilidade econômica, segurança pública e tantos outros direitos essenciais, o que nos falta hoje, em pleno outubro de 2019, é liberdade. Se você acredita que a terra é plana, que a ditadura brasileira não existiu, que índio é tudo vagabundo, feministas são todas cabeludas, desleixadas que não fazem sexo ou que absolutamente todos os problemas do planeta são culpa da esquerda, nem leia os próximos parágrafos. Não falamos a mesma língua, não tenho a menor pretensão ou capacidade de convencer  você de nada e nem você terá vontade de entender o que quero dizer quando falo em liberdade. Então nos encontramos no próximo texto. Beleza? 

Nos falta hoje a liberdade mais genuína, humana e simples que existe. A de expressão. A de falar e escrever o que pensamos. Perdemos a naturalidade, a educação e o bom senso para dialogar, discordar, trocar experiências, opiniões e intuições. Não conseguimos mais aceitar ou respeitar pontos de vistas diferentes dos nossos. 

Porque andamos um tanto distraídos nesses últimos anos e “acordamos” em fúria há bem pouco tempo, em 2013. Conectados por uma tecnologia tanto fascinante, quanto perigosa. Procurando culpados para todas nossas infelicidades, acusamo-nos uns aos outros. Demos de cara com um gigante imenso e desgovernado, no qual se transformou o nosso frágil e fértil país. Rachado ao meio, desmantelou-se em dois lados banhados em corrupção, ódio, ofensas, interesses e mágoas. 

Então, independentemente de que lado está cada um de nós, nesse momento, em outubro de 2019, estamos todos juntos perdendo a liberdade, os direitos, as verdades, a naturalidade, a poesia, a arte e a vergonha de agirmos com desumanidade.  

Estamos perdendo a graça. Da surpresa, do encontro, da troca, do aprendizado, de uma boa conversa, das diferenças. Então, sorrimos viajados e coloridos, com filtros incríveis, cabelos ao vento, parceiros atenciosos, filhos adoráveis, cãezinhos mimosos e sapecas e um astral invejável. 

Ainda assim, com essa maravilha de vida, sem nem saber como e quando, estamos perdendo a liberdade de ser porque somos todo o tempo julgados e, também, julgamos em nossos perfeitos e opressores templos e egos digitais. Em um terreno sombrio e raso onde quase todo o julgamento é autocrítica disfarçada de opinião. Desrespeito disfarçado de atitude, falta de educação disfarçada de personalidade forte. 

Quem está acima do peso é relaxado; se é muito magro, ou está doente ou é neurótica. Manchas no rosto? Quanta falta de autoestima. Excesso de cremes e procedimentos? Mas é muita futilidade. Ter dinheiro até ajuda — e bastante — a conhecermos lugares e pessoas diferentes, a estudarmos em boas escolas, termos acesso à cultura, qualidade de vida e plano de saúde. O que mais um ser humano pode querer? 

Mas o que ganha a batalha mesmo nessa guerra é a sabedoria e a humildade de experimentar se colocar no lugar do outro a todo o momento, a cada ação e reação. E colocar em prática a regra de que a nossa liberdade termina quando começa a do outro. Tão e somente assim. Se você se incomoda com as férias perfeitas da fulana, o ativismo de ciclana, o corpo esguio e malhado ou os quilos a mais pulando da calça da beltrana, me desculpa, mas o problema é exclusivamente seu de ter uma vida real tão sem graça, que ficou viciado em bisbilhotar e se meter na vida dos outros. 

E, por fim, se você, por acaso, não me obedeceu lá no início da crônica, e me acompanhou até aqui, por favor, agora leia com mais atenção ainda o que vou escrever. 

Todos os partidos nos deram rasteiras nas últimas décadas, conchavaram sempre bem alinhados e unidos só pensando em formas diferentes de se manter no poder e enriquecer mais; enquanto nós, ou morríamos de fome, na fila do SUS, de bala perdida ou vivíamos nossas vidinhas confortáveis. 

Eu disse TODOS os partidos. Você sabe que é verdade. O Chico Buarque e outros tantos artistas como ele, que você passou a odiar, podem até ter sidos beneficiados, sem necessidade (na sua opinião) com dinheiro público das leis de incentivo dos últimos governos, mas o problema são as regras das leis e não a arte. A Fernanda Montenegro não é sórdida e nem canalha. É um dos maiores símbolos da cultura nacional pela dignidade e o talento de viver da arte há quase 90 anos. O Luis Fernando Verissimo acabou de fazer 83 e não é comunista — é outro grande ícone da nossa cultura e um dos criadores mais talentosos e aplaudidos do país. A Miriam Leitão não é terrorista; é, aliás, uma baita jornalista que definiu bem na TV o momento pelo qual passamos: 

“A arte nasce da liberdade, e precisa refletir a pluralidade da sociedade. Não tem como não falar de relações homoafetivas, se elas são realidade. É assim que as liberdades morrem, é matando a arte. A autocensura tira o oxigênio da arte. Não é filtro, não é cuidado, não é defesa da família.” 

É falta de liberdade que se chama isso. E não me odeie. Além de eu ser bacana, nunca precisamos tanto de amor. 

Por Mariana Bertolucci
Foto de Heloísa Medeiros

  1. Graziela says:

    Mariiii eu achei tua crônica demais!!! Adorei. Quase pensei que eu deveria parar de ler no início e te encontrar na próxima e tudo beleza. Mas me encorajei e fui adiante, sabendo que sou pessoa flexível e curiosa pelo saber. E me surpreendi, pois temos muitas opiniões divergentes, mas não nesse texto. Nesse texto vi que temos mentes inquietas , espinhas nem mais tão eretas, corações intranquilos mas almas boas e só queremos o bem e a paz. E amamos a arte.

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