Num domingo em família em outubro de 2017, entrei no gabinete do meu pai quase tão possessa como agora e disparei sem nem um “oi” para o desembargador: “Tomara que esse bosta exploda logo a próstata e deixe o país em paz!!!” Meu pai me olhou entre a imensidão de jornais e livros que proliferam da mesa e disse com as mãos sob a cabeça, um dos seus gestos para extremas perplexidades: “Pelo amor de Deus minha filha! Mas o que é isso? Tu não repete mais uma coisa dessas! Mariana, tem coisas na vida que são questões de humanidade.”

Muitas coisas que meus pais sempre me disseram (e continuam dizendo) me visitam cada vez mais a mente. Repito à minha maneira para a Antônia. Não que eu tenha assimilado tudo na primeira vez. Inclusive, ainda há (sempre…) o que assimilar. Costumamos ser ágeis com o que nos interessa e umas lesmas lerdas para cavar as profundezas dos nossos buracos íntimos. Pais atentos procuram intervir pelo melhor para os filhos. Geralmente de uma maneira bem menos amorosa e gentil do que com a filha da vizinha ou a turma de amigos do trabalho. São enfáticos, eu diria, escolhendo uma palavra charmosa para definir a tensão das relações familiares. Isso também é assim mesmo, uma questão de humanidade, como bem disse o Dr. Perciano. A Silvana Porto Corrêa, minha amiga tanto sábia quanto espontânea, também me ensinou algo que não esqueci: “Repete Mariana! Repete! Não cansa de repetir! Uma vida inteira… a gente repete! Tu vai ver que um dia eles escutam e adianta!.”

O domingo de 2017 para mim foi definitivo. Meu pai jamais precisou repetir. É o que tem me apaziguado ao pensar nos fatos dos últimos dias. Uma menina de 10 anos teve seu direito legal de fazer aborto por estupro questionado. Ao lado da mãe, ela foi humilhada e exposta a ainda mais sofrimento e risco com abordagem criminosa da juíza Joana Ribeiro Zimmer e da promotora Mirela Dutra. Sem entrar em estatísticas, embora a matemática esteja longe de ser meu forte, proponho um raciocínio bem simples: se 20 mil crianças estupradas engravidam todo ano no Brasil, quantas será que passam pela mesma humilhação e dano físico e emocional de terem seus direitos negados ou postergados em salas frias comandadas por índoles geladas que estão à frente de alguns tribunais e delegacias do Brasil?     

A atriz Klara Castanho também foi desrespeitada e teve o capítulo mais dolorido da sua intimidade escancarado brutalmente nas redes sociais por uma mulher e um homem, que faço questão de não citar porque é exatamente disso que eles vivem: de fuxico e de misérias emocionais alheias. Klara não é mais a criança fofa que o Brasil viu crescer nas novelas, mas aos 21 anos, tampouco se afastou muito da adolescência. Eu, uma típica brasileira cruza orgulhosa de Aracaju com Gramado, mãe de uma adolescente, como a grande maioria das mulheres de absolutamente todas as gerações desse país, também já fui humilhada, agredida, abusada e desrespeitada e injustiçada em diferentes situações e fases da minha vida. Na rua, em casa, em festas bacanas, em bares ou no trabalho. Por homens e por mulheres. Muito provável que eu também já tenha agredido outra mulher com meu julgamento, algum comentário ferino, preconceito, impulso ou falta de maturidade. Para completar a tríade do absurdo, NÓS pagávamos até poucos minutos atrás um dos mais altos e influentes salários de cargos em comissão para um cidadão acusado ontem de assédio sexual por cinco funcionárias da Caixa Econômica Federal. Já quis colocar merdas e mais merdas em ventiladores de alta voltagem bem do jeito que a cretina e o cretino que não citei o nome fizeram com a Klara Castanho: sem pensar nas consequências para minha vida e para a vida de quem me desrespeitou. A diferença é que eu, e boa parte das mulheres brasileiras, fomos e somos todos os dias vítimas. Não pegamos carona na fama de ninguém, não recebemos salário para fazer fofoca maledicente sobre gente interessante e talentosa que atrai a atenção e os cliques da massa e tampouco estamos em cargos em comissão pagos pela sociedade brasileira para trabalharmos pelo BEM da nação e pelos municípios brasileiros. Aprendo coisas todos os dias, infelizmente de tanto que o machismo mata, machuca, viola, invade, estupra, assedia, constrange, enlouquece mulheres de todas as idades e classes sociais. Repete, repete, grita, berra atrocidades todos os dias na nossa cara. Ódio e vingança só ferram a vida e o fígado da gente. Eficaz mesmo é a permanente indignação. Não é justo que o peso da denúncia recaia sempre sobre as mulheres. Não adianta ser contra o machismo e a injustiça, é preciso que homens e mulheres sejam FEMINISTAS e JUSTOS. E isso minhas amigas e meus amigos, não tem nada a ver com política. É uma questão de humanidade.

Somos muitas e muitos, repetiremos até cansar!

Mariana Bertolucci   

Foto: Julio Cordeiro

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    1. Bárbara Selbach Oliveira says:

      Obrigada Mari por colocar tão bem neste texto toda nossa indignação. Acho sim que a indignação devemos repetir, repetir, repetir. Jamais nos calarmos diante de tanta crueldade. Que nossas filhas sejam bravas e fortes!!!.

  1. Bárbara Selbach Oliveira says:

    Obrigada Mari por colocar tão bem neste texto toda nossa indignação. Acho sim que a indignação devemos repetir, repetir, repetir. Jamais nos calarmos diante de tanta crueldade. Que nossas filhas sejam bravas e fortes!!!.

  2. Alcimir Richter says:

    Não consigo imaginar o que é viver sob o constante assédio de homens escrotos que provavelmente nunca tiveram mãe (como se fosse possível) irmã, amiga ou uma mulher que tenha amado. Isso só me atendo ao desrespeitoso assédio.
    Quando existe a violência então, quando ultrapassam os limites de um toque, sou a favor da pena máxima, a simples castração, não de morte, para lembrarem todo o dia de quem constrangeram. Estou sendo passional? Acredito que não.
    Não se trata de ser FEMINISTA e sim o de RESPEITO em todas as instâncias contra o ser humano.
    Violar de qualquer forma de constrangimento é desrespeitar a condição de seu semelhante. INOMINÁVEL
    BJ grande querida. Bela reflexão.

  3. Débora Bertol says:

    Todos os dias em todos os lugares meninas e mulheres são violentadas de diferentes maneiras. Não só as mulheres vítimas de abusos, mas também as mulheres racializadas, mal pagas ou consideradas não qualificadas no âmbito profissional e social. Muitas delas silenciadas frente a desumanização nesses tempos escuros. Mariana, obrigada por dar voz e ser combativa frente esta violência que ainda se perpetua.

  4. Lucas Reis Nonnenmacher says:

    Só gostaria de saber o que a criança que está no ventre com o coração batendo tem haver com tudo isso?
    Haja visto que pela própria ciência,ela seja considerada uma vida após de três a vinte e quatro semanas da fecundação.Acho que todas as vidas são importantes. Os direitos humanos e as leis protegem os bandidos porque não defender e proteger quem é frágil e indefeso? É uma questão de humanidade também! É só a minha humilde opinião, longe de querer gerar qualquer polêmica.

  5. Jessé says:

    Uma questão de humanidade. Sempre. E não podemos esquecer nunca. Não podemos nos calar nunca. Senão eles se fortalecem e se acham invencíveis. Siga sempre, Mariana

  6. Ana Emília Piccoli says:

    Mto importante e verdadeiro. Em plena era da tecnologia, um absurdo da idade da pedra . Só mesmo no Brasil de hj ,e de sempre , poderia ter sido levadas a público coisas tão dolorosas .Parabéns pelo teu protesto.

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