Por Marcos Rolim

Marcos é doutor e mestre em sociologia, professor de Direitos Humanos. Entrevista feita em 2015 pela jornalista e escritora Angélica Kalil e que está no livro Você é feminista e não sabe, de sua autoria e da ilustradora Mariamma Fonseca. Confira.

Você é feminista? Sou, faz tempo. Embora esse termo seja um termo tão cheio de significados, as pessoas não têm muita noção do que ele significa. Para mim, significa a ideia de um compromisso com a emancipação das mulheres, a ideia de igualdade entre os gêneros, a ideia de ausência de hierarquia na relação entre homens e mulheres. De tal forma que a gente possa tratar de igualdade respeitando as diferenças que evidentemente existem.

De que maneira as questões feministas trazem com elas as questões dos direitos humanos? Eu acho que tem tudo a ver com a ideia dos direitos humanos. As mulheres são historicamente atingidas por uma opressão muito particular, muito específica. Os homens exercitaram essa opressão ao longo da história eliminando, por exemplo, as mulheres do espaço público. Se a gente pega toda a história da civilização ocidental, isso é muito evidente, a quantidade de homens que tiveram expressão pública, que alcançaram notoriedade pela produção científica, pela arte, pela escrita e a gente vai ver, as mulheres poderiam estar aí também e não estiveram. Não estiveram porque este espaço foi surrupiado, foi sequestrado a partir desta relação hierárquica. É muito triste, porque a gente perdeu muito. Quando eu digo a gente, eu digo nós, os homens, perdemos muito. Essa opressão nos tornou piores e fez com que a humanidade perdesse talvez contribuições muito fundamentais, muito importantes que as mulheres poderiam ter dado. Claro que elas deram de uma forma ou de outra, mas isso ficou sempre subalterno, ficou sempre escondido, sempre desconhecido. Hoje – pesquisas começam a recuperar algumas dessas contribuições históricas – a gente começa a saber de coisas que aconteceram. Mas é uma história de muita tristeza e de muita violência.

Muitos projetos feministas estão buscando empoderar as mulheres resgatando seus feitos históricos não contados. Um dos que a gente mais gosta, As Mina na História, foi idealizado pela estudante Bia Varanis.

Um ótimo livro para entender melhor a violência que exise na nossa origem como nação: Um Defeito de Cor (2006), da escritora mineira Ana Maria Gonçalves.

No caso brasileiro, isso é sentido de várias formas muio particulares. Nós poderíamos começar a entender melhor o Brasil se disséssemos que somos filhos de um pai que foi o genocídio dos índios e de uma mãe que foi a escravidão. Um país que é filho do genocídio e da escravidão é um país muito triste, muito pesado. Na sua origem há dois crimes muito grandes. E as mulheres estiveram no centro das vítimas. As índias e as negras escravizadas  foram vitimizadas diretamente por conta desta violência. Talvez seja demasiado falar isso, mas acho que é importante repetir que a miscigenação que nos forma como nação – algo do qual a gente se orgulha tanto e tem muito a ver com a brasilidade, uma coisa importante da história brasileira –, na origem disso há um estupro. Na origem disso há uma relação não consentida, uma relação de poder que envolveu os colonizadores portugueses com índias e com negras escravizadas. Claro que não foi só a relação de violência, mas houve muito essa relação de violência também. Está na origem do Brasil e explica muitas das coisas que a gente enfrenta ainda hoje.

O Brasil é um país que tem tantas coisas bacanas, um país tão cheio de possibilidades, mas é um país que não passou por um processo de lusração, não há uma revolução iluminista no Brasil. As pessoas não têm ideia de direios e são muito facilmente ganhas por uma pauta conservadora, são muito facilmente estimuladas ao ódio, à violência mesmo. Acho que isso é um tema fundamental para a gente se dar conta no Brasil, a gente tem uma história tão violenta, tão marcada por este processo de exclusão e a gente não superou isso. As coisas estão muito marcadas na gente mesmo, na pele, enfim, a gente carrega uma disposição pró-violência muito grande como nação.

Então, esse tema da mulher, o tema da emancipação da mulher, o tema do feminismo, o tema dos direitos humanos são temas da civilização brasileira. Ou seja, se a gente quer ter uma civilização no Brasil, a gente tem que resolver esses problemas.

Por que para um homem é tão difícil perceber as questões que as mulheres colocam em relação ao machismo? Nós, homens – todos nós, inclusive aqueles que como eu têm, digamos assim, intelectualmente, moralmente, um compromisso, uma sensibilidade específica –, nós nunca vamos saber exatamente o que vive uma mulher. O que é esse sentimento, por exemplo, de andar pela rua acossada, sem ter o direito à indiferença, sem ter o direito de fato a transitar em liberdade? As mulheres são de alguma forma, todas elas, vítimas da violência sexual. Aquelas que sofreram a violência sexual e aquelas que nunca sofreram, mas que passaram a vida inteira temendo sofrer essa violência.

Usando a palavra acosso eu me refiro a essa postura, essa abordagem invasiva na esfera pública, onde os homens se sentem no direito de dizer uma gracinha, fazer uma abordagem, de falar coisas que são bastante ofensivas, repugnantes algumas vezes. Isso acontece com muita frequência no Brasil, a gente anda nos lugares e observa os carros passando e buzinando, sinal de luz, basta que haja uma mulher caminhando sozinha. Não importa se ela é velha, se é jovem, se é alta, se á baixa, se é gorda, se é magra, basta ser mulher e estar na rua. É como se em cada uma dessas abordagens os homens dissessem: o teu lugar não é aqui, o teu lugar é em casa subordinada a alguém.

Como é a atividade que você faz com seus alunos para que eles tentem se colocar no lugar da mulher? Eu costumo sempre fazer atividades que envolvam alguma experiência que mexa com sentimentos. O tema dos direitos humanos é um tema muito importante no sentido de afirmação de uma civilização democrática. Só que a gente não ensina direitos humanos como uma matéria teórica. Você pode passar os conceitos, explicar as leis, de onde é que vem, a pessoa anota aquilo, copia… mas é preciso que algo dentro deles se desloque emotivamente.

Eu procuro sempre encontrar exercícios, alguns caminhos mais dramáticos, dramatúrgicos, digamos, no sentido de permitir este deslocamento emocional. E uma das coisas que eu faço é uma brincadeira a sério que é colocar os meninos de um lado e as meninas de outro, frente a frente, como se fosse haver um debate. E digo: vocês vão se imaginar mulheres – pensem que roupa estão vestindo, agora acabou a aula e vocês vão para casa a pé, sozinhos, de noite. Agora descrevam o que vocês estão sentindo. E quando eles vão falando, as gurias vão corrigindo dizendo: “não, não é assim, vocês não perceberam tal coisa, ao chegar perto de um bar, tinha gente na calçada tomando cerveja? Então, vocês vão atravessar a rua. Ah, não me dei conta que tinha que atravessar a rua! (risos)”. Esse diálogo vai permitindo que eles não apenas se coloquem na pele das colegas, mas permite que elas corrijam dizendo: vocês não estão sacando qual é o problema, a coisa é mais complicada do que vocês estão imaginando.

O que a sociedade teria a ganhar se os homens e as mulheres tivessem os mesmos direitos? As relações sociais no Brasil são muito marcadas pelo desrespeito. Não é só na relação entre homens e mulheres, há uma situação que atravessa todas as relações sociais, de muito desrespeito. As pessoas não consideram o outro. Basta você olhar, por exemplo, para o trânsito, o que é o trânsito no Brasil, como as pessoas se deslocam nas ruas. A rigor, é essa ideia que cada um busca o que é melhor para si e os outros não me importam.

Na relação entre homens e mulheres isso é muito evidente. Todos nós perdemos muito nessa desigualdade. Se houvesse uma relação de mais respeito entre homens e mulheres, talvez fosse o começo para que outras relações também fossem permeadas pelo respeito. Um tema central na vida em sociedade é respeitar o outro. Aqui no Rio Grande do Sul, recentemente, o secretário de segurança do Estado, para chamar a atenção para as origens da criminalidade, disse que o problema também vem do fato de que as famílias hoje mudaram. As mulheres estão na rua trabalhando, logo não têm mais com quem deixar as crianças, então as crianças crescem sem a proteção, sem o amparo. Todo mundo saiu dizendo: é isso mesmo, ele tem razão. Só que tem um tema central aí que é por que razão as mulheres são responsáveis pela educação dos filhos? Por que razão mulheres e homens não são responsáveis ou não são vistos como responsáveis? O mundo está mudando, cada vez mais homens e mulheres compartilham estas reponsabilidades. Mas, na cabeça das pessoas, esse padrão está lá inteirinho: cuidar de filho é coisa de mulher, é problema da mãe. Então, se ela saiu para trabalhar, é um problema. E, na verdade, a grande questão é: como é que nós temos um país onde não se assegura educação desde cedo para as crianças?

Você tem filhas? Eu tenho duas filhas, uma maior, já com trinta anos, e a pequeninha, que eu chamo, que tem 19. As duas são feministas. E a Sofia, a mais nova, é muito sintonizada com os novos movimentos feministas que dão muita atenção para o tema da linguagem, das identidades de gênero. Eu tenho aprendido muito com ela. Isso é muito bacana, porque a gente nunca pode se dar por satisfeito com aquilo que a gente alcança, com o conhecimento que a gente tem. Um dos riscos de alcançar uma certa consciência é estabelecer aquilo como algo resolvido. As coisas não estão resolvidas, tem sempre alguma coisa mais. E eu aprendo muito com elas, muito.

Foto: Rafa

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