Por Simone Cruz

Simone é psicóloga, mestre em Saúde coletiva e coordenadora da Associação Cultural de Mulheres Negras (ACMUN). Entrevista feita por Angélica Kalil em 2015, que está no livro Você é feminista e não sabe, de sua autoria e da ilustradora Mariamma Fonseca. Confira.

O que é mais difícil, ser mulher ou ser negra? É difícil ser mulher, sempre foi difícil ser mulher, vivenciamos situações cotidianas de desigualdade. E quando se fala da mulher negra, a gente está falando também de uma violência que é o racismo, que é estruturante. Então, não existe possibilidade de a gente comparar questões de gênero e de raça, é preciso que a gente trabalhe junto com essas questões. As mulheres negras vivenciam o racismo, elas são violentamente agredidas por questões racistas cotidianamente e isso é uma questão muio difícil nas nossas vidas. É muito sofrido.

Como o período de escravidão ainda influencia o preconceito de hoje? Influencia de diferentes formas e em tudo. A opressão do período de escravidão ainda permanece. Muda o formato, mas a opressão continua. Tanto que ainda hoje não conseguimos estar nos mesmos lugares que a população não negra. Se a gente for observar os dados, a gente sabe que as mulheres negras estão na base da pirâmide e isso faz com que a gente vivencie essa opressão até hoje. E por que a gente está na base da pirâmide? Porque a gente não tem escolaridade o suficiente, porque a gente está nos piores lugares no mercado de trabalho, porque a gente é responsável pela família, muitas vezes sozinhas. Não só pelos filhos e pelo marido, mas tem que cuidar dos pais, tem que cuidar dos irmãos. Isso coloca as mulheres negras em uma condição muito difícil.

Como o ativismo entrou na sua vida? Estamos em um caminho de mudança? Nós estamos em maioria na população pobre. Muitas vezes, a gente ouve falar que os problemas não são raciais, são sociais: o problema não é o racismo, é porque a pessoa é pobre. Mas mulheres brancas também são pobres e, quando comparadas no mesmo nível socioeconômico, a gente ainda leva desvantagem. Ou seja, existem privilégos.

Como uma mulher branca pode ajudar uma mulher negra? De forma a reconhecer esse privilégio e assumir esse privilégio. E assumir e reconhecer o privilégio é ter que abrir mão de algumas coisas e isso é muito difícil. Quando nós vamos fazer trabalhos nas comunidades, eu sempre começo perguntando se existe racismo no Brasil. E as pessoas concordam: claro que existe racismo no Brasil. Agora, se perguntar quem é racista, não é ninguém. Então, parar para pensar e refletir como é que esse racismo opera de forma tão perversa faz com que a gente possa tentar mudar um pouco. Começando por assumir e reconhecer o privilégio que as mulheres brancas têm. Não basta eu não ser racista, eu tenho que enfrentar o racismo.

Por que as pessoas têm tanta dificuldade de reconhecer o racismo e o machismo? O sistema em que a gente vive é racista, é patriarcal. A gente falar parece simples, mas para abrir mão do que é teu, perder o teu lugar, tu tens que saber que estás em um lugar de con- forto, o difícil é isso. O discurso está presente, eu acabo reconhecendo, mas eu ainda não abri mão. Já existem várias mulheres feministas que reconhecem seu lugar de privilégio, mas a gente ainda precisa avançar mais, a gente precisa fazer com que as mulheres negras saiam deste outro lugar que é de desigualdade. E a gente não vai sair sozinhas deste lugar, porque o racismo não é culpa da população negra, ele é um problema da sociedade brasileira.

O quanto a pobreza contribui para o preconceito? Quando as empregadas domésticas, que em sua maioria são negras, conseguiram conquistar direitos que os outros trabalhadores e trabalhadoras já têm garantidos há muito tempo, eu lembro de ouvir na porta da escola da minha filha outras mães dizendo: e agora, o que a gente vai fazer? Mas como as mulheres negras fazem há anos, há décadas, há séculos para resolver a vida delas ninguém pensa, né? Ninguém pensa! Quantas mulheres negras deixaram de criar os seus filhos para criar os filhos de mulheres brancas? E nunca foram devidamente reconhecidas em relação a isso. Quantas mulheres negras abriram mão da criação, do cuidado, da afetividade com seus filhos, com a sua família como um todo, para se dedicar única e exclusivamente – porque moravam dentro das casas – aos cuidados de uma outra família?

E aí, quando pede para sair um pouco antes, a mulher patroa não deixa… Quando eu falo de privilégios é isso. Aquela patroa também tem um trabalho e ela sabe reivindicar os direitos dela no seu trabalho. Mas parece que é diferente. Por que a empregada (1) da casa vai ter direitos diferentes? Porque esse é o meu privilégio e eu não quero abrir mão do meu privilégio. Começando por assumir e reconhecer o privilégio que as mulheres brancas têm. Não basta eu não ser racista, eu tenho que enfrentar o racismo.

A mulher negra também é muito vista pela sua sexualidade… A mulher negra sempre foi visa pela sua sexualidade, pelo seu corpo. E este é também um dos impactos hoje, onde a gente aparece. Onde aparecem as mulheres negras? No Carnaval ou em um programa de televisão onde as mulheres negras vão única e exclusivamente estar ali por conta do corpo e da sexualidade. Nós éramos utilizadas no período de escravidão pelos senhores e isso continua até hoje (2). O único momento em que a gente é protagonista é no Carnaval. Fora isso, a gente nunca vai ter um papel de protagonista decente, digamos assim. Isso acontece por causa da falta de reconhecimento da sociedade, não conseguem nos enxergar de uma outra maneira. É importante hoje a questão da estética da beleza negra, por exemplo, na questão do cabelo. A gente não pode ser vista apenas pela questão sexual, porque isso é uma violência a que a gente é submetida. E que exemplo a gente vai dar para as crianças?

1 – #EuEmpregadaDoméstica

Com a hashtag #EuEmpregadaDoméstica, relatos de situações cotidianas encheram a págna do Facebook criada pela santista Joyce Fernandes, também conhecida como Preta Rara. Professora de história e rapper, ela escreveu um post sobre sua experiência quando trabalhava como empregada doméstica, encorajando outras mulheres a fazerem o mesmo. As marcas do período de escravidão no Brasil ficam gritantes nesses depoimentos.

2 – De acordo com informações do Dossiê Violência Contra as Mulheres, do Instituto Patrícia Galvão, e da pesquisa Violência Sexual, da Unicef, as mulheres negras são as principais vítimas deste tipo de violência no Brasil.

Eu ia perguntar isso, que impacto a pouca representatividade da mulher negra na mídia tem nas meninas negras – e brancas também? …e brancas também, com certeza. Acho que isso vem mudando por conta do movimento de mulheres negras. Diferentes grupos têm feito ações para valorizar a beleza negra, para valorizar outros aspectos das mulheres negras. Sábado passado teve aqui em Porto Alegre um evento que chama Encrespa Geral, que é sobre o cabelo. Quanto tempo a gente teve que alisar o cabelo obrigadas. Obrigadas a alisar o cabelo, porque se a gente não alisasse o cabelo, a gente estava fora, a gente era recusada – e ainda somos muitas vezes recusadas no mercado de trabalho por conta do cabelo. Então, esses eventos (3), essa coisa de a gente usar turbante, usar o cabelo para cima, isso é importante para mostrar que o nosso cabelo é bonito, não é um cabelo ruim.

É muito pesado você falar para uma criança que ela tem o cabelo ruim. Que criança que vai crescer bem, feliz, como vai ser a autoestima de uma criança, se ela vai se formar ouvindo desde os dois anos de idade que o cabelo dela é ruim? A imposição de que a gente tem que ter a pele clara, de que a gente tem que ter o cabelo liso, faz com que a gente mantenha esses padrões. Então, a gente não aceitar, a gente recusar essa imposição, que é uma imposição social, acho que contribui para que a gente também possibilite que meninas e jovens negras tenham um futuro melhor.

3- Nos últimos anos, no Brasil e no mundo, surgiram muitos eventos e manifestações como o Encrespa Geral de Porto Alegre. Todos eles com a proposta de valorizar a estética africana como forma de fortalecer a autoestima das mulheres negras combatendo o machismo e o racismo.

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