Por Giselle Christina

Giselle Christina é graduanda em Sociologia e integrante do coletivo Acampamento de Feminismo Interseccional. Entrevista feita por Angélica Kalil em 2017, que está no livro Você é feminista e não sabe, de sua autoria e da ilustradora Mariamma Fonseca. Confira.

Que tipo de feminismo interessa na periferia? Na periferia o feminismo que interessa – na verdade, acho que nem é o que interessa, é o necessário – é o feminismo interseccional. A gente não pode pensar a questão de gênero na periferia sem pensar no recorte de classe. Na periferia estão as pessoas pobres. E a gente não pode pensar em classe sem pensar em raça. Quem é pobre? É preto. Então, essa ligação de classe, raça e gênero é absurdamente intrínseca na população periférica. A gente costuma dizer que o feminismo negro abraça a mulher preta, pobre e periférica, PPP – apesar de eu querer sair desse ciclo, porque eu acho que a gente tem direito a mais. Quem gosta de pobreza, quem gosta de favela, quem gosta de necessidade é quem ganha dinheiro com isso. O pobre, preto, periférico não gosta, está ali porque é uma condição à qual foi submetido. Então, acredito que o feminismo interseccional seja o que mais se enquadra e o que mais abrange toda a população feminina da periferia.

O termo interseccional é usado para marcar as diferentes formas de opressão – gênero, raça, etnia, classe, nacionalidade, capacidade física ou intelectual, identidade, orientação sexual e lugar de origem, citando alguns exemplos, podem se sobrepor nos diversos sistemas de opressão da nossa sociedade. Por isso, não é porque somos oprimidas que não podemos oprimir também – lembrar que não existe uma categoria universal de mulheres é muito importante para que nossas conquistas possam avançar. E para que nenhuma de nós fique para trás.

Quantas camadas de opressão uma mulher da periferia é obrigada a suportar? Tem uma frase que eu costumava usar muito – hoje eu uso menos, porque eu operei o estômago, então eu emagreci bastante –, que eu era neguinha, baixinha, gordinha, de trancinha, pobrezinha e macumbeira. Você pensa, uma mulher preta, pobre, lésbica, macumbeira, operadora de telemarketing, da periferia, só aí a gente já tem seis, por cima, camadas de opressão. Você está no fundo do ônibus quebrado, todo mundo vai descer primeiro. As formas de opressão para uma mulher da periferia são infinias. Dá para fazer todo tipo de recorte. Você vai ser oprimida primeiro pelo homem negro, que é o que está mais próximo de você, então essa opressão começa com seus irmãos, quando eles têm a cabeça rapada e você não, você tem que sustentar o seu cabelo crepo. Aí, seus irmãos, primos, amigos, pessoas da escola já costumam te chamar de neguinha do cabelo duro, de Bombril e tudo mais. Essa opressão passa depois para aquela vizinha que tem o tom de pele mais claro e já pode fazer uma chapinha no cabelo, já consegue ter uma passabilidade maior. Essa opressão vem quando você começa a sair da periferia, encontrar outros lugares e aí tem mulheres brancas que indiretamente te oprimem na área sentimental, quando elas são preferidas pelos homens negros. E, acima de todas elas, tem o homem branco, que é o macho alfa, que é o ser humano perfeito nessa nossa estrutura social.

A gente sempre fala dos resquícios da escravidão e eu queria que você falasse dos resquícios da escravidão na relação entre a mulher branca e a mulher negra. Eu acho que é muito claro a gente entender o resquício da escravidão comparando mulher branca e negra, quando você vê que a mulher branca sempre é a patroa. E, em contrapartida, a mulher negra continua sendo enxergada como a mucama, que hoje é a empregada doméstica. É muito fácil você encontrar mulheres negras que já ascenderam socialmente e, na hora que bate um vendedor na porta e ela atende, o cara fala: chama a sua patroa. O resquício da escravidão não é um resquício, ele ainda é muito forte e mostra para a gente de uma forma escancarada como funciona a nossa sociedade.

Você acha que nós estamos em um caminho de mudança? Acho. Hoje em dia, a gente consegue tensionar muito o sistema de várias formas. Se a gente for pensar no empoderamento da mulher crespa – hoje tem empoderamento de tudo, empoderamento da bunda, empoderamento da mulher preta, empoderamento, sei lá, dos meus cabelos brancos! Tem muito empoderamento! (risos) Se você for pensar, há dez anos você não achava um produto para cabelo crespo, você não achava um salão para cabelo crespo. Isso não partiu da indústria. Marx dizia que a indústria dita o consumo: a gente produz, produz, produz e enfia em vocês, vocês têm que consumir, porque a gente está produzindo. Hoje em dia, eu acho que é sutil a mudança, mas a gente está conseguindo mudar. Partindo dessa coisa do cabelo crespo, a partir do momento em que a gente começou a colocar muito em voga: vamos assumir o cacho, vamos em transição, vamos fazer big chop, vamos fazer aqui essa hidratação de maionese com óleo de soja que esse negócio dá um pá no cacho e fica maravilhoso. A indústria foi vendo que esse negócio estava crescendo. A primeira Marcha do Cabelo Crespo, que eu acho que aconteceu há dois anos, era completamente independente. Na última, no ano passado, todas as marcas de cosméticos estavam patrocinando, porque todas essas marcas hoje têm produtos para cabelos cacheados. Eu sou careca, mas a minha mulher tem uns cabelinhos, eu abro lá o armário do banheiro e tem shampoo para cabelo 2A, 2B, 3C, condicionador para cabelo ondulado, esse daqui é para finalização, tem maionese capilar, tem com óleo de argan, óleo de rícino, óleo de não sei o quê lá. Essas coisas você tinha que se matar para comprar, você quase tinha que bater o coco no pilão, hoje em dia você acha em qualquer perfumaria. A gente conseguiu tensionar o sistema de uma forma que eles colocaram isso, porque estão vendo que a gente tem dinheiro, a gente compra, a gente consome. Em 2015, a população negra movimentou um trilhão e meio de reais. Se a gente fala em black money, em dinheiro de preto, é um trilhão e meio, isso é maior que o PIB de muito país.

Um público consumidor que antes era desconsiderado. Era desconsiderado. Da mesma forma que aconteceu com a população LGBT, que descobriram que era um público que, por ter uma família mais enxuta, gastava mais com artigos de consumo para si, coisas supérfluas, aí virou aquele boom de vamos apoiar os bichas. ]

É capitalista? É. Todo mundo quer ganhar dinheiro em cima de todo mundo. A gente vive em uma sociedade capitalista, não dá para negar isso, está posto, está dado, está aí, a gente tem que aceitar. Mas a gente tem que entender que a gente não pode só lutar contra, muitas vezes a gente tem que embarcar na mesma onda para conseguir alguma coisa.

Ter estratégia… Exatamente, tem que ter estratégia. Estão ganhando dinheiro em cima da gente? Estão, mas também estão fazendo coisas para a gente, não dá para negar isso. Então, melhorou? Melhorou. Hoje é melhor do que há dez anos atrás? É. É melhor do que há vinte, do que há trinta anos atrás, quando a gente torrava as orelhas com ferro quente? É. Mas não é bom, ainda não está bom.

Mas a gente está em um caminho de mudança. Um caminho de mudança a muito longo prazo.

O feminismo ajuda no empoderamento da mulher? A gente não teria conseguido metade das coisas que a gente conseguiu hoje sem o feminismo. Quando eu falo de feminismo, na verdade eu tenho um recorte muito específico, que é o feminismo negro. A gente tem que pensar que o feminismo e o feminismo negro são duas coisas completamente diferentes, as pautas são outras, a gente é quase o avesso. Enquanto a mulher branca lutava para trabalhar, a mulher negra sempre trabalhou.

Na questão da sexualidade, a mulher branca luta para poder sair com a roupa que quer e a mulher negra, muitas vezes hipersexualizada, não quer se expor. Exatamente. Pelo direito também de querer sair tapadinha, porque a gente é cobrada, se sair de cacharel de casa: imagina com um corpo desse, porque você vai tapar tudo isso? Quando deu esse boom do feminismo, quando veio a internet, que ainda conseguiu disseminar o feminismo ainda mais, a gente conseguiu entender que você pode ter esse corpo de escola de samba – que não é porque a gente quer, ele simplesmente se desenvolve desse jeito – e ainda assim ser acadêmica ou não saber sambar. E tudo bem você não saber sambar, legal você não ter paciência nenhuma para escutar Zeca Pagodinho. Você quer sentar e ficar lendo poetisa portuguesa – falei, porque eu amo Florbela Espanca! (risos) Que seja, tudo bem! Então, colocar isso de uma forma que a gente consiga entender, de uma forma não acadêmica. Semana passada teve uma polêmica terrível por conta da Djamila no Amor & Sexo: Ah, é um programa fútil, um programa superficial, ela foi lá, falou umas besteiras, todo mundo falou errado. Gente, o feminismo na periferia é superficial, aliás, ele é inexistente! A MC Carol diz: eu comecei a fazer música, eu comecei a falar uns negócios e aí as pessoas disseram que eu era feminista, eu lá sabia que porra era feminista? As mulheres pretas da periferia são feministas. Se tem que gritar, se tem que bater, se tem que fazer barraco, se tem que sair de shortinho ou de calção, elas vão sair, elas vão fazer, porque só tem elas por elas ali dentro da comunidade. Mas elas não sabem que isso é feminismo. Tornar isso menos difícil de entender é bem importante.

Florbela Espanca (1894-1930), poetisa, deixou uma obra marcada pelo forte teor emocional e erótico. Foi a primeira mulher a ingressar no curso de direito da Universidade de Lisboa e escreveu para diversos jornais e revistas. Precursora do feminismo em Portugal, teve uma vida cheia de altos e baixos.

Em 2014, a cantora norte- americana Beyoncé apresentou-se no Video Music Awards (VMA), da MTV. Durante a performance da música ***Flawless, a popstar usou trechos de uma conferência da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. O discurso de Chimamanda, “Sejamos todos feministas”, também virou livro, já traduzido no Brasil.

A Globo está se apropriando do discurso feminista, é claro, porque nesse momento ele está vendendo – como você estava falando de mercado consumidor. Mas ele está chegando através da Globo em lugares que não chegaria. A mulher que está longe do centro urbano, por exemplo, essa mulher não tem internet, não tem livro feminista para ler, mas ela tem a tevê. Ela vai se empoderar, ela vai entender como isso funciona onde? Na tevê.

A gente não pode recusar isso A gente tem que aceitar qualquer tipo de propaganda. Não existe publicidade ruim, já diziam os grandes marqueteiros, publicidade é publicidade. Quando a Beyoncé falou da Chimamanda em um clube, todo mundo ficou sem saber o que era – quantas meninas não foram procurar quem era a Chimamanda e a partir daí desenrolar todo um reconhecimento?

CategoriasSem categoria

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.