trote calouros de medicina

Bá experiência por Diogo Zanella/Estúdio Telescópio

“Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”.

Lembrei imediatamente desta frase de Paulo Freire, o pensador e educador brasileiro premiado mundialmente, quando viralizou na internet o caso dos calouros de medicina da Universidade Santo Amaro

Com genitais à mostra, eles simularam masturbação durante um torneio de vôlei feminino. Um caso obsceno e inacreditável, apelidado de “punhetaço”. Em nota, a instituição afirmou ter sido um trote universitário. E acredito que foi mesmo.

Nesta reportagem do g1, estudantes da Universidade Santo Amaro afirmam que correr pelado em torneios faz parte da cartilha de humilhações exigidas pelos veteranos. Todos os calouros de medicina são pressionados a participar. Quem se nega a cumprir as determinações é hostilizado, agredido e ameaçado. 

O trote universitário foi trazido ao Brasil por uma elite formada no curso de direito em Coimbra, no século XIX, segundo esta reportagem da Revista Veja. Essa forma de “boas-vindas” iniciou no nosso país por São Paulo e Pernambuco. A primeira vítima fatal de que se tem notícia foi em 1831, quando o estudante Francisco Cunha e Meneses morreu durante o trote da Faculdade de Direito do Recife

E o que isso tem a ver com Paulo Freire?

O trote universitário, embora muitos considerem um rito de passagem qualquer, é, na verdade, uma relação de poder e hierarquia. É o veterano de hoje que foi o calouro de ontem reproduzindo a violência que passou e agora pode ser vingada. Como se a humilhação vivenciada ao ingressar na universidade justificasse a opressão que agora ele pode exercer contra os próximos que chegam.  

Sei que muitos, ao lerem isso, não concordarão. Irão romantizar as “cerimônias festivas” de chegada dos novos estudantes. Não problematizarão a tradição de ter o cabelo raspado e o corpo pintado para pedir moedas no sinal. “É só uma brincadeira”. Contudo, não é de hoje que casos de trotes violentos ou inadequados vêm à tona. 

Em 1999, Edison Chi Hsueh, de apenas 22 anos, morreu afogado. Após dizer que não sabia nadar, ele foi jogado em uma piscina olímpica durante a recepção aos calouros de medicina da Universidade de São Paulo.

Em 2006, um calouro do curso de agronomia da Universidade Federal de Uberlândia foi despido, coberto de tinta e obrigado a deitar sobre um formigueiro por veteranos do curso. Com mais de 250 picadas, ele precisou ser internado. 

Em 2010, na Universidade Federal de Rio Grande (Furg), na “festa de boas-vindas” do curso de engenharia, dois calouros foram forçados a ingerir uma quantidade exagerada de bebida alcoólica. Entraram em coma e foram internados. 

Achou alto o número de casos violentos de trote que citei? São apenas alguns entre muitos outros reportados nesta publicação da revista Superinteressante, de 2012. Há muitos outros. 

Ritos de passagem são importantes e simbólicos, é verdade. Assim como a própria colação de grau, já que estamos no assunto faculdade. Mas não é o caso do que ocorre em algumas universidades do Brasil, que culminam em violência, abusos, episódios de misoginia e em casos extremos vítimas fatais. Paulo Freire estava certo.

A educação precisa ser libertadora e ter uma abordagem anti-opressiva. Não autoritária. Inclusive nas universidades, os celeiros dos futuros profissionais de diversas áreas. A questão dos trotes precisa, sim, ser debatida dentro dos cursos, sem que as instituições lavem as mãos em relação ao que acontece entre calouros e veteranos, independente se for dentro ou fora dos campus das universidades. 

Esse assunto precisa ser pauta e, por meio da educação e da informação, é preciso do entendimento dessa cultura como uma forma errática e perigosa de perpetuação de violência e opressão. E, cá pra nós, trote é de muito mal gosto.

No episódio desta semana do podcast Bá que papo recebemos a jornalista Flávia Moreira, a nova colunista da Revista Bá, com a coluna Bá mulher de fases. Ouça agora noSpotify clicando aqui. Para ler outros textos da coluna Bá experiência, acesse este link.

Bá experiência por Diogo Zanella/Estúdio Telescópio

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