Otimista e gentil, prestes a completar 100 anos, o multiartista Vitório Gheno passou a vida pintando quase diariamente, jogando golfe, vendo filmes policiais e nunca teve fronteiras na inspiração.

Num tempo em que não era qualquer sujeito que circulava desenvolto pelas rodas de Porto Alegre vestindo calças vermelhas, Vitório Gheno o fazia com naturalidade invejável. De caminhar manso e olhar miúdo, há 10 décadas passeia seu estilo e afia sua atenta e serena mira criadora a qualquer canto que traga encanto à sua inquieta alma artista. Gremista fanático, o escorpiano apesar de circular muitíssimo bem e agradecer os amigos maravilhosos de tantas turmas, não pertence a grupo ou rótulo algum. Artista plástico e gráfico, antiquário, publicitário, ilustrador, decorador de hotéis e designer de móveis, Vitório tem o pé e as referências na cultura mundana, mas sua identificação maior é com o Rio Grande do Sul. Na sua rotina no apartamento do Centro Histórico, que é também seu ateliê, ele costuma acordar cedo, lê os jornais deitado no sofá vermelho sob uma bela Audrey Hepburn de sua autoria. Toma café e vai pintar e desenhar com a versatilidade que lhe é peculiar: “ Minha rotina é diversificada, vai de acordo com a minha vontade de pintar. Pelo Centro me deparei com aquelas filas enormes e o ônibus que não chega nunca.” Saiu a série Fileiras conta, apontando para uma tela. “Outro dia vi um galo, cheguei em casa e pintei um galo. Minha pintura é eclética, a versatilidade é tão difícil de explicar…” Se é, Vitório… Apesar do traço bem particular e marcante, ora mais, ora menos colorido, assim como o autor, sua arte circula por diferentes universos e estilos estéticos. Entre dezenas de potes e bisnagas de tintas, cavaletes e telas, muitas telas, livros de arte e filmes, o universo artísticos de Vitório é iluminado e livre de qualquer ordem. Sua arte pode ser expressionista, figurativa ou abstrata, ou até passear pelo cubismo e o impressionismo naturalista. Assim também foi sua trajetória profissional, sempre aberta às muitas possibilidades. Essa história que completa 100 anos no próximo dia 26 de outubro, começou em 1923 numa família de descendentes italianos na cidade de Muçum. Aos quatro anos já morador da capital, depois de passar pelo Colégio Dante Alighieri, foi para o turno noturno do Anchieta, na década de 30. Durante o dia trabalhava em uma alfaiataria de um italiano apaixonado por artes e música, onde arriscou os primeiros rabiscos. Aficcionado assíduo da Livraria do Globo, aos 14 anos começou a trabalhar na Seção de Impressão Litográfica da Livraria e Editora Globo, para em seguida ser transferido para a célebre Seção de Desenho da Globo, chefiada pelo alemão Ernst Zeuner. De aprendiz de litografia passou a ilustrador da Revista do Globo, onde foi autor e criador das primeiras crônicas ilustradas e deu forma a contos de nomes consagrados como Cyro Martins, Rubem Braga, Vinícius de Morais, Lygia Fagundes Telles e Fernando Sabino. Gheno também criou capas de livros e participou da fundação de entidades culturais gaúchas como a Associação Francisco Lisboa no fim dos anos 1930, com apenas 15 anos e do Clube do Cinema, dez anos depois. Morou em Buenos Aires de 1945 a 1947, onde conheceu Monteiro Lobato e trabalhou com publicidade. De volta ao Brasil, ele vai espiar a cena cultural mineira onde faz amizade com Guinhard, em 1948. De volta à Editora Globo, inicia também na empresa jornalística Caldas Junior. Com as ilustrações na Revista do Globo, seu nome ganha alcance nacional. A menina dos olhos de Gheno era Paris pós-guerra, em 1950, onde fixou residência e estudou gravura por dois anos. Na Avenida Montparnasse, foi vizinho de apartamento de Iberê Camargo, de quem já era amigo, Nessa época, desfruta a borbulhante e efervescente Cidade Luz, de 1950 a 1952, dividindo mesas e contas com a nata da intelectualidade de sua geração, que incluía pessoas como Jean Cocteau, Marc Chagall e brasileiros como Antônio Bandeira, Cândido Portinari, Danúbio Gonçalves, entre outros. Com o gaúcho Carlos Scliar, Gheno imprimia suas litografias no mesmo ateliê utilizado por Braque. Criou estampas de tecidos para a Casa de Alta Costura de Madame Grees e assistiu a desfiles da alta-costura parisiense enviando ilustrações para o Brasil. Foi nessa época que cruzou pelas ruelas parisienses com o ídolo maior: “É o gênio do século passado, depois de Picasso não apareceu mais ninguém. De volta ao solo verde e amarelo foi contratado como Diretor de Arte da Agência McCann Eriksson do Brasil, no Rio, onde criou vários anúncios conhecidos e também o layout da revista Manchete Nº 1,  publicação com a qual colaborou ilustrando contos de escritores. Em 1955, é chamado pela Varig para ornar com seus traços cardápios dos vôos transatlânticos. Da temporada carioca em seu apartamento no Leme, a convivência com um dos mestres da arte mobiliária, o português radicado no Rio, Joaquim Tenrreiro, incorporou mais uma atividade: a decoração de interiores e design de mobiliário. No fim dos anos 1950, volta a morar em Porto Alegre, depois de mais de uma década e meia fora, motivado pela família e os três filhos pequenos.

Em 1957, fundou a primeira loja de decoração de Porto Alegre, que levava seu nome, na Rua 24 de Outubro, no Moinhos de Vento. Além das criações próprias os xodós da loja eram os famosos móveis Forma, empresa paulista de mobiliário contemporâneo criada pelo casal Wolf e o mobiliário assinado. A atividade artística sempre esteve presente. Nos anos 1970 e 1980, criou séries de litografias para as redes hoteleiras que decorava, sempre com temática histórica-social de diferentes regiões do Brasil. Toda essa dinâmica vida e imensa obra vem sendo pesquisada e registrada pela documentarista e fotógrafa Nádia Raupp Meucci desde 1995 e já resultou no lançamento do livro de arte de sua autoria Gheno Artista Plástico, em 2006 no Margs. Ela já produziu também Vitório Gheno Obra Completa. E se o Sr, Vitório fez tudo o que teve vontade nos seus 100 anos de vida? “Acho que sim, já fiz tudo o que queria na vida. Mas quero fazer sempre mais”. Sobre a arte, ele é enfático: “Só acho que chamar arte ou o que quer que seja de instalação é uma bobagem. Arte é arte. Uma bicicleta encostada num poste é uma bicicleta encostada num poste.” Esse é o Gheno! Vamos por mais.

Por Mariana Bertolucci

Foto: Nádia Raupp Meucci

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  1. Maria cecilia Sperb says:

    Reportagem maravilhosa !! És brilhante Mariana escreves como ninguém !!! Sou tua fã incondicional !! Descreveste o Gheno bem como ele é !! Parabéns querida amiga !!!

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