Ainda guardo a coleção de camisas do Grêmio na parte mais alta do meu roupeiro. De edições comemorativas, como a de 1995, ano do Bicampeonato da Libertadores, da despedida do Olímpico, assinada pelo time inteiro, até pelo presidente do clube. Hoje, quem me conhece, custa a acreditar que já fui frequentadora assídua das arquibancadas, torcedora de carteirinha mesmo, não só pela força da expressão. E então, durante a pandemia, começou a mudar. Foi o princípio de uma desconexão com o que o futebol representava para mim. Passei a questionar onde investia meu tempo, se aqueles valores me representavam.
O último lugar público onde eu estive antes de nos enclausurarmos por conta da COVID-19 foi na Arena do Grêmio. Ficou conhecido como o “Grenal do fim do mundo”, pois no dia anterior a Organização Mundial da Saúde havia oficialmente declarado a pandemia. Enquanto o vírus se alastrava pelo planeta Terra, 50 mil pessoas lotavam a Arena. Não fazíamos ideia do que viria pela frente, mas o medo não falou mais alto que o dinheiro e, nessa equação, o capitalismo sempre vence. Para muita gente era apenas uma “gripezinha”. Enquanto pessoas morriam nos hospitais com falta de ar, dirigentes de clubes e seus patrocinadores discutiam a necessidade do retorno do futebol como “entretenimento”. Apenas três meses após o início da pandemia, ele estava de volta para alegrar nossos lares. Testes de eficácia duvidosa determinavam quem entraria em campo em estádios com portões fechados, mas poucas semanas depois até o público foi liberado para retornar.
Os jogadores eram como a orquestra do Titanic. Jogavam enquanto pessoas morriam. E morriam aos milhares. Esse foi o primeiro sinal de alerta que me fez refletir sobre muitos aspectos para os quais eu insistia em não olhar. O futebol não é sobre a paixão de pessoas por um esporte. É, antes de tudo, sobre dinheiro. Poderia ser também sobre dinheiro, mas é sobre dinheiro antes de qualquer outra coisa, antes, inclusive, das pessoas.
Voltei lá para o início de tudo. Coisa que evitei por anos, porque olhando com as lentes de hoje, foi o mais próximo que já estive de um relacionamento tóxico e, como sempre, a gente reluta em admitir que viveu aquilo. Numa época em que celular e internet não existiam, eu jogava bola na escola, na rua com os vizinhos e quando parava em frente a TV, mais futebol. Meu colégio ficava em frente ao Beira-Rio numa distância tranquila para se deslocar a pé até o Olímpico, desde que não fosse dia de Grenal, pois nesse caso a violência andava junto entre coquetéis molotov e escolta policial. Minha mãe – que nunca gostou da coisa – na maioria das vezes imaginava que eu estivesse assistindo as partidas na casa de um vizinho. Ela sabia do perigo. Mãe, vou ver o jogo, eu dizia. E batia a porta para não ter que explicar onde. Lembro de deixar o relógio em casa e de usar meu tênis mais velho nesses dias.
No início frequentei a “geral”, como era chamada a ala de ingressos mais baratos, junto aos colegas da escola porque nem todos eram sócios ou pela adrenalina de assistir próximo às torcidas organizadas. Ali, as brigas eram rotineiras, o álcool liberado, e a polícia a cavalo no aguardo do tumulto generalizado. E acabava rolando em quase todos os jogos. Era um ambiente estritamente masculino. E violento. Ninguém queria que estivéssemos ali. E isso foi sempre verbalizado. Quando eu me levantava para ir ao banheiro, ouvia os gritos da torcida em coro: “iii, essa puta eu já comi”. Na volta, a mesma coisa. Isso se não tomasse um saquinho de mijo na cabeça. Senta piranha!
Ser mulher e gostar de futebol é gostar de um esporte que detesta a gente. E por que eu insistia em continuar frequentando um ambiente tóxico? A gente insiste porque acredita que o futebol é maior que essas violências. Não é.
O futebol apoia veladamente a misoginia, como faz vista grossa para os racistas que oferecem bananas aos nossos atletas. Não se falava sobre feminismo na época em que nossa presença era sempre hostilizada, coisa sentida por todas as mulheres que ousavam pisar em um estádio. Por segurança, passei a usar a carteirinha de sócio remido do meu pai e entrar na área social do estádio. Era um ambiente seguro, como se existisse um código moral secreto onde o acordo era não mexer com mulher nenhuma, pois estavam todas acompanhadas de seus pais ou maridos. “Não mexe com a minha e eu não mexo com a tua”. Eu acreditava na ilusão de que éramos respeitadas quando, na verdade, o limite era a tolerância.
Uma briga entre torcidas organizadas no Recife. No meio da pancadaria, um homem cai no chão. É agredido por cerca de 20 pessoas em um ato de selvageria inexplicável. Eu me senti mal por ter clicado no vídeo, porém ele estava no corpo da matéria e eu não imaginava o conteúdo. Como se não bastasse, enquanto o torcedor permanecia desacordado como um boneco de pano atirado na sarjeta, um dos agressores surgia com uma barra de ferro e, em plena luz do dia, com dezenas de testemunhas, estupra o torcedor.
Caído. Desacordado. Semimorto.
É uma barbárie. Um esporte que cultua estupradores, na torcida e em campo.
Robinho achou que colocar o seu membro na boca de uma mulher desacordada não era sexo, mas fugiu para o Brasil pensando que estaria imune à justiça italiana. Em um acordo inédito a justiça brasileira acatou a condenação do supremo tribunal da Itália e determinou que ele cumprisse a pena aqui. Robinho segue no presídio de Tremembé, aguardando a sentença de 9 anos de prisão.
Outro estuprador famoso, Daniel Alves, que agora dissemina frases motivacionais e se apresenta como coach na rede social LinkedIn, pôde contar com a ajuda do Neymar pai para se livrar do xadrez. Após pouco mais de um ano recluso, pagou a fiança de 1 milhão de euros e teve sua sentença anulada. Daniel mudou 4 vezes a versão do seu depoimento. De início, disse não conhecer a vítima, depois, que apenas a encontrou no banheiro. Na terceira versão, assumiu que teve uma relação consensual com a moça, e que mudou o discurso para não ter problemas com sua esposa. Em um último depoimento, afirmou que estava completamente embriagado, como se o álcool fosse uma droga capaz de tornar um homem de valor em potencial estuprador. A advogada da vítima segue recorrendo em busca de justiça. Que chance teríamos nós contra o sistema? Pervertidas de minissaia a atiçar pais de família.
Anos atrás, o goleiro Bruno, após mandar matar a mãe de seu filho, ainda encontrou espaço para seu futebol decadente no Boa Esporte, um time de segunda divisão onde torcedores o receberam empunhando cartazes de boas-vindas. Nesse caso, a opinião pública falou mais alto e mesmo com a diretoria o defendendo, ele teve seu contrato rescindido depois da perda de patrocinadores e da manifestação da torcida contraria a permanência de Bruno.
Normalizamos tantos absurdos em nome do esporte que seguimos passando pano desde a condenação do Cuca pelo estupro de uma menina de 13 anos na Suíça, em 1987 (quando ele jogava pelo Grêmio). Foi também um caso de estupro coletivo onde, como no caso Robinho, o DNA foi comprovado através do sêmen encontrado com a vítima. Na época Cuca fugiu para o Brasil e o crime prescreveu. A menina suíça cometeu suicídio anos depois e seus familiares afirmavam que ela nunca se recuperou do trauma.
Eu poderia continuar narrando histórias de violência dos mais variados tipos, pois elas permeiam o futebol desde a sua existência. Infelizmente, poucas vozes se levantam contra esse sistema que enaltece seus ídolos e descredibiliza suas vítimas. Eu me pergunto: o que o futebol retorna de impacto positivo para a nossa sociedade? Ainda persistem poucos, mas bons exemplos de ídolos do futebol, alguns duramente criticados por seus próprios companheiros. De tempos em tempos, quando encontram espaço, vozes ecoam para além dos campos na luta contra racismo, homofobia, misoginia e o avanço da extrema direita. Mbappè convocou os jovens franceses para irem às urnas, Richarlison fez campanha para vacinação da Covid durante a pandemia e seu xará, Richarlyson, atual comentarista da Globo, declarou ser bissexual (o que só fez após abandonar o futebol), do contrário, sua carreira se encerraria tão logo tivesse confirmado os rumores. Vini Jr e sua dura luta contra o racismo, após ser alvo por dezenas de vezes, resistindo e denunciando sempre. O saudoso Sócrates com suas pautas sociais e seu irmão Raí, que em 2024 concluiu um mestrado em políticas públicas na França. Todos envolvidos com projetos sociais por entenderem a necessidade da causa e não por holofotes. Kylian Mbappé também abordou a questão da depressão no esporte e ressaltou: “somos humanos e não heróis”. São todos homens com talento, alguns, com caráter também.
O futebol movimenta 250 bilhões de dólares anualmente. É o mercado mais rentável do ramo esportivo. Patrocinadores junto aos grandes clubes, atletas e treinadores são uma ponta dessa cadeira, do outro lado estão os torcedores. Os verdadeiros apaixonados por futebol, que gastam sangue, suor, lágrimas e dinheiro, muito dinheiro. Grana que financia tudo isso.
Raí, que foi campeão do mundo em 94 e é ídolo até hoje do Paris San-German, declarou em recente entrevista que seus 20 anos de dedicação ao futebol equivalem ao que um jogador do mesmo nível ganha hoje em 6 meses. Há dinheiro de sobra para colunas gregas, portas gigantes e carros absurdamente caros.
O futebol se desconstruiu para mim em um processo lento e muito pessoal em que questionei atitudes tomadas dentro e fora de campo por seus dirigentes, torcedores, por seus comentaristas, apoiadores, patrocinadores, mas, principalmente, pelo péssimo exemplo como tem se apresentado ao seu público mais sensível e importante: as crianças.
Sigo enxergando a magia aritmética de um gol de escanteio, numa caneta bem executada e até uma pontinha de orgulho quando um atleta desenvolve um projeto social por entender a importância do gesto e não para criar uma imagem. O futebol é democrático, percorre os gramados dos cinco continentes, e conquista adeptos das mais variadas culturas. Pode ser jogado com bola de pano em chão de terra ou com uma chuteira de centenas de dólares e, ainda assim, revelar ídolos de igual talento em condições tão adversas. Essas linhas não foram escritas para demonizar um esporte que reverbera em seus torcedores uma comoção genuína. Mas espero que o futebol tenha como compromisso cuidar da comunidade que o apoia, disseminar valores de tolerância, respeito e diversidade, porque acredito no esporte como uma ferramenta social transformadora.
E que você, caro torcedor, siga encontrando beleza nesse esporte que um dia também me trouxe alegrias e que hoje, mora na lembrança.
Por Sabrina Ferri, empresária e escritora
Sensacional!!!!!!!!
Nada a por..