Sábado, verão a pleno, temperatura amena, Paris vazia, …. vazia, de nativos, quero dizer, que se foram à praia ou à maison de campagne, porque parisiense que se preza, – ah! este, sai de férias no mês de agosto. Os poucos que ficam disputam o espaço ao lado da horda de turistas que invade a cidade. Foi num destes sábados que nos fomos a tomar um drink no bar americano da Closerie de Lilas.

Na hora do pôr do sol, turistas e saudosistas, embalados pelo som do tradicional piano, sob o fundo do burburinho das conversas e do tim tim dos brindes, flutuam entre passado e presente, tantas as memórias registradas na história da mítica brasseria. As bolhas do champagne, seu efeito volátil, me transportam à época dos Années Folles, à década de vinte, marcada por uma energia criativa inigualável, até hoje lembrada pelos tantos movimentos culturais revolucionários.

Com o término da primeira guerra mundial, restabelecida a paz, na contracorrente do conflito, o parisiense quer se divertir e aproveitar a vida. Reina um espírito de liberdade. Aristocratas e milionários, pessoas comuns e boêmios, todos querem participar da atmosfera que tomou conta da capital francesa. O contexto político, social e cultural é propício ao nascimento do mito da Paris dos “Anos Loucos”, associado ao apogeu das liberdades individuais, à evolução dos costumes, ao desenvolvimento das artes e da literatura, um momento mágico entre as duas guerras mundiais. Paris é o lugar preferido de artistas, escritores e intelectuais que afluem do mundo inteiro.

Na literatura, os franceses Gide e Breton dão o tom do novo viés libertário, redigem o Manifesto Surrealista, embrião do movimento. A livraria Shakespeare and Company (1919), é inaugurada pela americana Sylvia Beach e passa a ser o ponto de encontro dos artistas da lost generation, como Ezra Pound, Henry Miller, Gertrud Stein e Man Ray. Marco desta liberdade de expressão é a publicação, na França, da primeira edição de Ulysses, livro cult do irlandês James Joyce, censurado que fora em outros países, mesmo na Inglaterra e nos Estados Unidos.

Num momento de forte crescimento econômico, toda uma geração sonha com um mundo novo e busca caminhos diversos. São os anos das transgressões, da revolução cultural, da emancipação das mulheres. A moda feminina evolui, libera o corpo, encurta os vestidos, o corte de cabelo à la garçonne está em voga. A arquitetura inova, constroem-se edifícios de sinuosos contornos, de linhas limpas e materiais nobres. Surge o ART DECO, estilo que se amplia no mobiliário e nas artes decorativas atestando a modernidade dos anos loucos.

Paralelamente à chegada dos aliados americanos (1917), o jazz faz sua aparição, e também o estilo de vestir casual, descontraído, próprio de Nova York.

Joséphine Baker desembarca em Paris, com ela o Charleston. Ritmo frenético, olhar estrábico, saiote de bananas, seios à mostra. Uma dançarina exótica sobe ao palco e muda radicalmente a cena do music hall. Deixa a platéia siderada, alegre, eufórica. Total Frenesi! A influência norte-americana é tamanha a ponto de alterar a velha concepção da tradicional brasserie. Surge o coktail, uma mistura de etílicos, odores e sabores. O visual belo e colorido da bebida encanta os olhos e as pupilas, até então arraigadas ao vinho, ao conhaque e ao pastis. Está criado o conceito de ‘Bar Americano’, um recanto novo nas brasseries, nos restaurantes, nos grandes hotéis.

Durante os Anos Loucos, a Rive Gauche do Sena concentra as Artes e as Letras, artistas aí se instalam em residência ou atelier. Os escritores americanos Fitzgerald, Henry Miller e Hemingway cohabitam com exilados que fugiram das ditaduras mediterrâneas e balcânicas, os pintores Modigliani, Soutine e Chagall, expoentes do grupo que virá a ser conhecido como a ‘A Escola de Paris’.

Montparnasse é o quartier preferido dos artistas. Estendem-se ao longo do boulevard, o La Coupole, o Rotonde, o Select, a Closerie de Lilas, famosos cafés, ainda hoje no mesmo endereço, bar americano incluso.

A escritora, colecionadora e mecenas norte-americana Gertrud Stein também elege a rive gauche. Em seus salões, no número 27 da Rue de Fleurus, cruzam-se Picasso, Matisse, o fotógrafo Man Ray, os escritores Hemingway e Fitzgerald. O diálogo é profícuo, a troca é enriquecedora, o tom é acalorado. O alcool é boa companhia e novas ideias brotam neste ambiente avant-gardiste, tal como figura no nosso imaginário.

O Retrato de Gertrude Stein, pintado pelo jovem Picasso exigiu 90 (noventa) sessões de pose até ser concluído, do que fazer nascer sólida amizade entre a mecenas e o pintor. Até hoje conhecida como uma das personalidades mais influentes do mundo artístico do século XX, Gertrude Stein foi pioneira no impulsionamento da arte moderna propulsando vários artistas à notoriedade. De estatura pequena e visão ampla, sob sua influência convincente, Hemingway abandona o jornalismo e dedica-se unicamente à literatura. Torna-se um escritor de renome, mundialmente conhecido. No livro póstumo, Paris é uma Festa, publicado em 1964, a partir de manuscritos deixados pelo escritor, Hemingway retrata a Paris dos Anos Loucos, um turbilhão de festas, intensa vida cultural e celeiro de novos artistas.

…Hemingway retorna aos Estados Unidos levando consigo a doce lembrança da capital de sua juventude e de seus primeiros escritos. Em 1944, no fim da segunda guerra mundial volta à Europa; quer ser o primeiro a americano a liberar Paris, então sob ocupação alemã. No bar do Hotel Ritz, brinda e aclama ‘Paris está livre’. Em sua homenagem, o aconchegante bar do luxuoso Hotel leva o nome de Bar Hemingway.

….Sábado, verão a pleno, Closerie de Lilas. O tempo passou, os costumes mudaram, a efervescência continua, a cultura reverbera, a beleza encanta. Paris segue sedutora, a proporcionar prazeres que nos permeiam os poros, nos apuram os sentidos. Hoje, à arte moderna, agrega-se a criação contemporânea. Atualmente, em um só local, podemos admirar a audácia do Novo Realismo, através das obras de Niki de Saint Phalle e Jean Tinguely, a curiosa instalação Nosso Barco Tambor Terra, do brasileiro Ernesto Neto, e a fenomenal criação Euphoria, a Arte está no Ar, uma multitude de ambientes aéreos, que convida o visitante a mergulhar numa experiência interativa única. Três manifestações de arte contemporânea no majestoso Grand Palais, que, por si só, vale a visita.

Sem contar o resto, o tanto e o tamanho. Outros atores, novos paradigmas… Paris é uma Festa!

Maria Alice Ripoll, Paris, verão 2025

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  1. Hilda Regina Silveira Albandes de Souza says:

    Adorei tua evocação aos anos loucos. Como sempre, teus escritos nos encantam e nos fazem aprender muito sobre o histórico legado de Paris.

  2. Fernanda says:

    Parabéns por mais uma excelente crônica, que nos transporta como uma verdadeira máquina do tempo. Mas a viagem que Maria Alice nos proporciona não é em qualquer máquina: é numa que transborda cultura e beleza, e cativa os viajantes.

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