É hoje (21/8) das 18h às 22h na Associação Leopoldina Juvenil o lançamento com sessão de autógrafos do livro Marie e o nobre anônimo, título do romance de estreia de Fátima Mazzoleni, escrito sob a batuta luxuosa da experiente romancista Leticia Wierzchowski. A obra é a décima sexta publicação do selo Bá Editora + Araucária dos jornalistas, escritores e editores Antônio Luzzatto e Mariana Bertolucci.
Qual o sangue que circula nas minhas veias, já miscigenado de anos e de amores? Foi respondendo a essa pergunta que Fátima, sacou os dramáticos e até então incompreendidos acontecimentos de sua história familiar do abissal alforje da memória, e manipulou dolorosos dardos, tornando-os ocasiões de felicidade. Na recriação dos fatos que a ficção permite fazer, a paixão e o bom humor dessa narradora um tanto histórica, um tanto ficcional, impediram que as sombras da infelicidade embotassem por completo a vida da personagem central e os olhos do leitor.
Nezamyslice não era de todo um lugar comum. Havia lá um menino sujo que não sabia o que era amar, uma moça com perfume de tílias, ciganos proféticos, uma amiga de fadas, um ourives de joias fabulosas, uma mulher que podia sentir a voz do vento que cantava lá dos bosques, das colinas infindas dos campos… Mas havia também um casamento amaldiçoado por uma filha que sequer viera ao mundo.
Já Hofburg, que parecia lugar de realizações, foi palco de destruição de sonhos. Deu-se por lá um estupro, porque um não foi insuficiente, — é insuficiente desde há muitos séculos — na voz suplicante de uma mulher. Restara uma moça violada por um nobre sem escrúpulos, um filho bastardo concebido no obscuro recanto de um palácio. Duas pessoas que dali por diante viveriam em permanente estado de diáspora.
Quase dois séculos depois, ano de 2024, uma conversa fortuita entre sobrinha e tia provocou uma ebulição no espírito de uma narradora que despontava naquele exato momento. Fora maculada a honra da família, e marcado à ferro e fogo o coração da pobre Marie. A desgraça guardada por tanto tempo combaliu qualquer ato de justiça. Mas, aberto o segredo, abriram-se também as feridas, e esgotou-se o tempo da impunidade e do abandono. Será preciso justiçar aquela mulher, e não há outro caminho. Malas, viagens longas e inúmeras fizeram de Fátima um Marco Polo de saias, uma aventureira atrás de documentos que pudessem comprovar os fatos, acima de tudo.
Mas uma página arrancada sonegou de Marie a profissão exercida com maestria no âmbito do palácio da Imperatriz Sissi, sonegou a sua própria existência, a ausência de um sobrenome ao filho negou-lhe a paternidade como direito, e impingiu a Kornelius, a bastardice.
E os fatos, embora tenham outras indiciadas comprovações, foram de menos para reparar os abusos à Marie. “Sinto-me subitamente tão sozinha aqui com estas linhas… talvez quase tão sozinha quanto fora Marie, minha doce bisavó, a quem estou recriando, sentada num trem repleto de desconhecidos, rumo a uma Viena igualmente estranha”.
Este é um fragmento que bem poderia ser um desabafo de Marie em sua longínqua romaria até Hofburg, mas ele traduz também o sentimento da narradora quando de suas peregrinações à cata da verdade. Assim são as mulheres: incansáveis nas suas caminhadas pela vida. Ao leitor, cabe conferir o imenso bloco de emoções com a leitura de toda a história.
“Resolvi cavoucar o passado à procura da sentença que empurrara a bisavó para o seu exílio afetivo. Assim, resolvi encher estas páginas de tudo aquilo que jamais foi dito sobre ela — montando o quebra-cabeça dos fatos encontrados, inventando o que era apenas silêncio, preenchendo os vãos da sua vida com as histórias possíveis —, de modo a entregar à bisavó um pouco de risos, de amores, um pouco da alegria que a vida, esta malvada, surrupiou-lhe sem piedade. Com os papéis destruídos, ficou-me a curiosidade e a vontade. Era preciso combater o preconceito cruel, o moralismo 14 de cuecas que costurara o mundo até então, e, junto com ele, as nossas relações familiares. Desse modo, decidi poetizar o passado. Aos poucos, em noites e tardes roubadas do mundo, comecei a compor de palavras os encaixes que faltavam na vida de Marie. Aquela que, um dia, viria a ser minha bisavó…” Saudação a uma narradora de primeira linha, Fátima Mazzoleni!
Por Socorro de Assis, professora de literatura e escritora
Sobre a autora
Fátima Mazzoleni nasceu em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Formada em Educação Artística pela Universidade de Passo Fundo, venceu vários prêmios em Pintura e foi selecionada para o 5° Salão Brasileiros de Artes Plásticas em 1988. Estreia na literatura com Marie e o nobre anônimo, seu primeiro romance.