Entrevista em setembro de 2016

Nascido na primavera de 1934, em São Leopoldo, Ruy Carlos Ostermann é um multimídia autodidata desde anos antes de a expressão existir. No extenso currículo estão projetos marcantes, duradouros e sempre exitosos em rádio, jornal, TV e na literatura. Com a mulher e professora de História, Nilse Wink Ostermann, teve os filhos Cristiane, Fernanda e Felipe e os cinco netos.

Ainda não tinha tirado as calças curtas e já gostava de ouvir. Muito. Porque ouvindo percebeu que aprendia. Ele cresceu acompanhando o pai no Café Comercial, em São Leopoldo. Metia-se nas mesas dos grandes e ficava ouvindo:

“Me impressionava com os assuntos. Percebi cedo que as pessoas têm limites e que algumas, que gostariam de fazer coisas com alta qualidade, não conseguem. Essa limitação, a exemplo, da dúvida, é outra qualidade humana que me parece decisiva”.

Atento as pessoas, foi natural o caminho do reflexivo e curioso aluno do Colégio Sinodal das mesas dos adultos para o trabalho de repórter na Folha da Tarde. “Eu escrevia no café do meu pai e as pessoas achavam que tinha qualidade”. Os amigos adultos de ambos incentivaram Ruy a trabalhar no jornal em Porto Alegre. O candidato à vaga nunca tinha usado uma máquina de escrever ou entrado numa redação: “Era jovem e não sabia nada. O Maneca, que era o secretário da Folha da Tarde Esportiva, me disse: ‘Vai chegar um jogador de tal lugar e tu tens que pegar uma notinha com ele”. Tempos em que o fotógrafo era o álibi da informação. A foto do repórter ao lado do entrevistado era fundamental para acreditarem que a entrevista tinha mesmo ocorrido: “Falei com o jogador, voltei para a redação e comecei a catar milho. Terminei e ele me disse: ‘Tá contratado’.  Fiquei perplexo. Esse foi meu início. Então fui sendo dominado pela redação e nunca mais parei.”

Em 1962, entrou na Caldas Júnior, e na empresa trabalhou na Rádio Guaíba, Folha da Tarde, Folha da Manhã e Folha da Tarde Esportiva. A ida para o Grupo RBS foi em 1978.

É difícil que quem tenha nascido antes da década de 1980 e que tenha sido ou seja minimamente informado nas últimas cinco décadas não reconheça com facilidade o suave e límpido timbre da voz do Professor. A primeira cobertura de Copa do Mundo foi em 1966, pela Guaíba, na Inglaterra. Em 2014, cobriu seu 13° mundial. Nos anos 1970, tinha um comentário em horário nobre, pouco antes do Jornal Nacional, chamado 2 Minutos de Esporte. Em 2007, estreou como comentarista no programa Bem Amigos, apresentado na época por Galvão Bueno no SporTV. Durante 33 anos ininterruptos, comandou o Sala de Redação, sendo seu mais longevo âncora.

A convite de Pedro Simon, foi eleito deputado estadual pelo Rio Grande do Sul duas vezes, nos anos de 1982 e 1986. No último mandato, foi secretário de Ciência e Tecnologia, e da pasta da Educação, no governo Simon.

O cidadão honorário de Porto Alegre recebeu o apelido de Professor quando trabalhava na Folha da Tarde. Não apenas pelo impecável uso da língua portuguesa e pela clareza nos comentários, mas também por ser formado em Filosofia e ter dado aula no Colégio Israelita. Além de comentarista esportivo, âncora do Sala de Redação, cronista de Zero Hora, o jornalista também comandou por anos o Gaúcha Entrevista, programa diário e ao vivo da Rádio Gaúcha com personalidades da cultura. De 2004 a 2013, esteve à frente do projeto da Signi, comandada pela filha Cristiane.

Em uma década do talk show aberto ao público, Ruy entrevistou figuras como Eduardo Galeano, Ziraldo, Zuenir Ventura, Luis Fernando Verissimo e Deborah Colker. O resultado deste projeto está publicado em oito volumes da série Encontros com o Professor – Cultura Brasileira Entrevista.

Amante da literatura, autor de 11 livros e patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, em 2002, Ostermann é um dos grandes nomes da geração de ouro do jornalismo nacional. Aos 54 anos de carreira, e 82 de vida, ele honra o apelido e ensina a cada lúcida resposta que você lerá a seguir. Disserta prazerosamente sobre o papel do comunicador e as fraquezas humanas: “O comunicador tem que gostar do que diz e de si próprio quando fala. Não ficar surpreso que tenha pensado algo fora de propósito. Pelo contrário. Tem que se surpreender consigo próprio. Avançar. Isso é uma qualidade das pessoas e nem todas sabem fazer isso. Porque é muito difícil viver. Tentar se harmonizar a si mesmo. Com todas as veleidades, precariedades, problemas e insatisfações. Me parece que aí reside a sabedoria. Que não é saber coisas demais. É saber de si próprio”.

E por falar em si próprio, quando pergunto sobre um possível livro de memórias, ele responde à risca como manda a própria cartilha, questionador e naturalmente flexível às mudanças de percurso: “Não. É justamente o que quero evitar. Acho pretensioso, sabe?”.

Eu sorrio do excesso de modéstia do meu entrevistado. Ele me conta que está organizando um material escrito e eu pergunto insistente: “Quem sabe mesclar esses escritos com a própria história, teacher?” Ele me devolve com a sábia dúvida: “Sinceramente. Não sei, pode ser que acabe fazendo. Ou quem sabe esse livro seja também de memórias. De qualquer modo, eu estou retomando gradativamente essas atividades”. Obrigada, Professor!

Revista Bá – É tempo… hein, professor? Sensação de dever cumprido total?

Ruy Carlos Ostermann – É muito tempo. Olha, te confesso que muitas vezes tive dúvidas a respeito disso. Porque eu sempre fui exigente. E comigo tive um tipo de exigência que até me fazia bem, sabe?

Me deixava orgulhoso de sempre achar que eu podia fazer melhor. E isso necessariamente me levou em uma direção surpreendente, às vezes, em que eu tive que explorar um pouco as circunstâncias, tive que me valer delas, impor algumas situações diferentes. Muitas vezes, eu tive que me submeter a uma situação contrária. E isso é exatamente a experiência profissional. Isso é a qualidade da experiência profissional. E tu saberes qual é o limite de um lado e de outro. E há sempre dois limites.

Em rádio, televisão e jornal, falando sobre futebol e cultura, isso te caracterizou como um comunicador muito eclético. Fala sobre isso.

Eu sempre fui assim. Essa é uma característica que eu tinha desde menino. Eu tinha curiosidade, prestava atenção nas conversas das pessoas e gostava de sentar com os adultos e ouvi-los. Isso durante muito tempo parecia que era uma pequena extravagância razoável. Mas, por outro lado, depois eu notei que era uma exigência que eu tinha. Eu queria mesmo era não ficar conversando qualquer coisa, ouvir sobretudo as pessoas com qualidade pessoal e que pudessem imediatamente me alertar para alguma coisa. Então essa qualidade, digamos, de ficar alerta à realidade, isso é um traço da intelectualidade que eu gosto muito. Porque é exatamente onde tu estás com os elementos básicos da filosofia – por exemplo, a dúvida. A dúvida é essencial, né? Tu não podes ter certezas. As certezas são passageiras, substituíveis, e algumas são absolutamente desprezíveis.

Então tu não podes te valer disso, mas por outro lado tu não podes deixar de passar por isso. É fundamental que tu entendas que tu estás te relacionando com uma coisa que te escapa ao controle e que, portanto, tu não tens certeza sobre ela. Essa incerteza é uma qualidade intelectual muito boa.

Muito forte. As pessoas que não têm dúvidas são categóricas, são autoritárias e são menores. Tem que ter dúvida. E a dúvida muitas vezes é um atraso, porque, se tu não tivesses a dúvida, tu terias feito tal coisa. No entanto, tendo a dúvida, tu travaste antes e pensaste. E isto é exatamente a qualidade: pensar. Voltar atrás, dar uma volta.

Ganhar tempo e, sobretudo, levar em conta as premissas, as alternativas que se colocam para a gente. Nunca entender que uma coisa é uma coisa. Uma coisa é uma coisa, e mais outras coisas, e outras tantas coisas. Isso me parece ser a grande qualidade que a gente tem que preservar sempre. E desde menino eu era assim.

Foram esses amplos e diversos interesses aliados a esse temperamento curioso e interessado no humano que te levaram a buscar a filosofia?

Sim, o primeiro curso superior foi a Filosofia. Jornalismo eu não fiz. Sou autodidata. Mas a filosofia muito cedo me chamou a atenção de que, se em algum momento eu pudesse de fato aumentar a qualidade da minha relação com as pessoas em geral, era certamente por essa linguagem que a filosofia oferecia. Com essa pergunta que ela propunha com naturalidade e com a exigência da linguagem que ela fazia. Tanto que, durante muito tempo, eu me lembro, algumas pessoas quando se referiam a mim diziam que eu era empolado. Eu sempre falava. Um querido amigo meu dizia: “O Ruy é a única pessoa que diz manteiga”. Ou seja, o “i” desaparece. Mantega, é claro. Mas eu não. Isso poderia parecer pretensioso. Uma tentativa de falar melhor, falar direito, mas sempre foi a característica que eu tive. E eu vivi sempre assim. Eu me relacionei com a primeira namorada assim, me relacionei com os meus primeiros amigos assim e segui minha vida depois, no jornalismo, exatamente assim. Ou seja, com curiosidade, com discrição e também com muito respeito. E isso exigiu de mim, por exemplo, muito mais do que eu poderia dar normalmente.

Essa carência, digamos assim, foi exatamente o que me deu forças, me deixou in-satisfeito. A incompletude das coisas, elas não se completam, elas ficam em aberto. E, por ficarem em aberto, elas são suscetíveis de tu as pensares mais. Tu não consegues ficar satisfeito com a resposta. A resposta é precária. E essa precariedade da resposta é exatamente o elemento motor do conhecimento.

E sobre a primeira pergunta, do dever cumprido. É essa exigência pessoal que te faz eterno insatisfeito, no bom sentido?

Sabe, a minha experiência nesses últimos anos é muito difícil. Primeiro porque eu me aposentei.

E sentiu falta, né?

Claro. Me aposentei, e esse é um erro que todos praticam, e eu já tentei fazer uma pequena investigação, sem dizer que estava investigando isso. Mas para verificar como as pessoas procederam dentro dessas circunstâncias. De ter de parar. A maioria não sabe fazer isso.

A maioria fica procurando alguma coisa e não a encontrando e por consequência entristecendo, diminuindo de qualidade e assim por diante. Ou então reduzindo as suas relações. No entanto, é isso, e tão somente isso, que faz com que uma pessoa progrida, porque se ela se sentir satisfeita… Pergunta básica é a seguinte: satisfeita com o que, amigo? Com tudo? Todas as coisas? Não. As coisas não satisfazem. O mundo é incompleto, as relações são incompletas. As afirmações são imprecisas. Os deslocamentos das pessoas em relação a um assunto ou acontecimento são inevitáveis. Quer dizer, tu não estás no mesmo lugar sempre. Tu mudas sempre. Essa é a qualidade que eu acho mais importante.

De que hábitos na rotina de trabalho tu sentes mais falta?

O fato é que tu tens sempre uma dívida, digamos assim, sempre falta. Tu tens uma falta de alguma coisa. Às vezes, tu não sabes nem expressar completamente: “O que é mesmo que está me faltando?”. Mas algo está faltando. Há uma coisa incompleta, uma coisa que não se completa. É um ciclo da vida que vai mudando. Quando tu vês, tu estás metido numa situação que tu não sabes que tu serias capaz de enfrentar. E tu te obrigas a enfrentar. E isso é uma qualidade que o tempo dá. A pessoa fica, assim, não diria experiente, mas fica apta ao enfrentamento da dificuldade. Ela se sente bem. Ela não fica assustada com a situação e encara. O medo, por exemplo. O medo é uma vitalidade humana que tem que ser pensada. Muitas vezes, ele é imobilizador. Muitas vezes, ele joga a pessoa para fora. Mas, na maioria das vezes, o medo faz um alerta.

Cria uma atenção especial. Tu percebes, por exemplo, que as coisas estão incompletas e podem ficar piores, mais incompletas ainda. Ou incompletas no sentido que tu não imaginas. Isso tudo é a experiência humana. Isso é rico. Isso é fantástico. Eu, por exemplo, quando comecei a estudar filosofia, me dei conta de que eu estava lidando com uma dimensão de mim mesmo que eu desconhecia. Eu não tinha noção disso. O fato de prestar atenção na conversa dos adultos e perceber que algumas coisas que eles diziam só eles eram capazes de dizer, e eu não, eu era só capaz de ouvir. Com o tempo, eu fui gradativamente incorporando essas indagações, digamos, vamos admitir, filosóficas em que eu não pensava simplesmente: a porta abre e eu vou. Não, não: por que a porta abre? Uma, tu já tens uma situação totalmente diferente. E ela abre para quem? Ainda mais. Essa humanidade que a cada instante a dúvida ressalta, traz de volta, põe a tua disposição e te exige. Isso é a qualidade que me parece que seja essencial ao desenvolvimento intelectual e moral. As pessoas crescem dentro disso. Porque elas são exigentes e insatisfeitas. E a satisfação que elas têm é exatamente ter alcançado uma parte, mas elas têm plena compreensão de que é apenas uma parte. As outras virão.

É uma espécie de postura humilde diante de si mesmo.

Exatamente, porque há muitas pessoas aparentemente sábias, e que aparentemente conhecem quase tudo, ou viveram quase tudo. Mentira. Elas estão encenando para elas mesmas e para os seus amigos uma paródia. Alguma coisa que elas gostariam que fosse assim, mas não é.

Essas incredulidades, digamos, que a cada instante tu tens que encarar, elas acabam determinando também o teu grau de maturidade, o teu crescimento, a tua grandeza.

Eu gosto muito das pessoas que reconhecem as coisas. “Isso aí eu não sei”. Ótimo! É um ponto de partida. Não é um ponto final. É um ponto de partida.

E tem verdade também, né?

Claro. Então isso é uma conquista que o ser humano faz na sua vivência intelectualmente forte, e moralmente válida. Um ser humano que é devotado a si próprio, ele é devotado aos outros na mesma medida. E tanto valoriza nos outros qualidades quanto tenta de várias formas valorizar em si essas mesmas qualidades. Então isso é um crescimento da humanidade, é o crescimento da vida.

Tantas entrevistas e gente que compartilhou histórias contigo. Tens lembranças de entrevistas e personagens que mais marcaram?

Geralmente a entrevista tem várias frentes, ela se define de várias formas. Uma delas é a entrevista em si mesma, em que tu trocas opinião e observações, satisfazes e ponto final. A outra é a entrevista que tu tentas, que não fica completa e que fica pulsando. Como um dado incompleto. Que vai te exigir em algum momento. E tu terás que voltar atrás e tratar dele. Um dado da entrevista. E assim há vários tipos. Acho que o que mais me marcou ao longo do tempo foi o fato de que eu prestei atenção nas pessoas, compreende? Mesmo quando era uma frase ou duas, ela tinha a intenção de esclarecer alguma coisa. As coisas que eu pretendi fazer, as coisas que me meti a fazer, participei da feitura e assim por diante, elas todas têm em si uma qualidade, que não é nada de excepcional também, mas é a qualidade da atenção, do cuidado. E, sobretudo, da valorização. Eu já fiz muitas entrevistas que nem eram entrevistas. Numa noite, fui visitar a Mafalda e o Erico Verissimo. Fui levar algumas coisas que o Luis Fernando tinha que desenvolver e não tinha feito. Cheguei lá e ele estava dormindo. Aí olhei para a Mafalda e disse: “Mafalda, eu vou embora”. E ela disse: “Não, entra”. Sentamos na sala e o Erico me disse: “Ruy, fala do meu filho”. E eu respondi: “Mas, Erico, tu és a pessoa que mais conhece o teu filho”.  E ele: “Não, eu às vezes fico em dúvida, eu às vezes acho que ele é outra pessoa e que eu que gostaria que ele fizesse aquilo ou assim”. Digo: “Olha, Erico, vou te dizer algumas coisas que eu penso: primeiro, ele vai fazer a vida dele, de acordo com os valores que ele tem, certo? Isso ele fará. Por outro lado, ele não vai imitar quase nada do que tu fizeres, por uma questão de respeito e de orgulho”.

E ele concordava. Segui: “Por outro lado, ele vai ser um sujeito que vai pensar coisas importantes, mas não vai te dizer todas. Não é do jeito dele falar muito. É do jeito dele ficar quieto”. A Mafalda ria. E aí nós ficamos, eu, o Erico e a Mafalda, conversando uma noite toda sobre o Luis Fernando. Sem que a gente pudesse avançar muito mais do que isso aí. Porque o Luis Fernando sempre foi enigmático, fechado, não abria muito. E é meu querido amigo. Estava lembrando disso agora que estávamos conversando. É uma lembrança que veio dessa nossa conversa.

Acabei me expondo a uma curiosidade de pai que eu, até então, não tinha imaginado.

Existe alguma maneira de se expressar dentro da comunicação que te fazia brilhar mais o olho?

Vou fazer uma observação pretensiosa. Eu sempre gostei muito de falar. Eu tinha o prazer de me ouvir e sobretudo em ver o efeito do que eu dizia junto às outras pessoas e em mim mesmo. Isso é uma qualidade que muita gente tem. Tem que ter um timbre de comunicação globalizado. Como tu és diante das pessoas. Estou falando contigo como eu falo com os outros.

O assunto pode mudar, mas o tom com que eu vou falar, o grau com que eu vou me comprometer, é necessariamente, mas invariavelmente, o mesmo. Tem que ser. Porque, na verdade, as aventuras da linguagem são interessantes. Por exemplo, as pessoas muitas vezes formulam uma frase e aí se dão conta da audiência que ela tem, do grau de repercussão que ela tem. E até ficam um pouco embevecidas de terem chegado até lá. Isso é uma constatação da fala para frente. Das pessoas que eu conheci e com que lidei e com as quais eu tive que conviver necessária e agradavelmente. As principais são aquelas que têm a oralidade, que têm a presença física nítida, isso é muito importante. E aquelas que necessariamente passam por uma reeducação gradativa dessa relação, compreende? Gradativamente tu te educas mais para o contato com os outros.

Nivelar por cima…

Exatamente. E tu percebes que tu estás aquém de uma proposta. Tu estás abaixo do nível proposto. E tu não chegaste lá. E que tu nem sabes como chegar lá. Essa inquietação é maravilhosa. Isso é a dúvida, a dificuldade. Que faz com que a pessoa cresça. Todo aquele que se diz satisfeito morreu. Todo aquele que se diz insatisfeito está começando. Porque exatamente isso deve ir até o fim. Porque não tem outro modo de tu valorizares a tua relação com as pessoas, e valorizar sobretudo a tua presença diante das pessoas, senão através desse reconhecimento. De que tu és uma peça importante, mas não a única. E que as outras peças são importantes, mas não as únicas. E que tudo isso que está incompleto, é isso que é a vida.

A curiosidade com as pessoas é a parcela melhor da tua formação?

Eu nunca me satisfiz em fazer outra coisa. Sempre ou fiz palestras, fiz ou dei entrevistas. Ou simplesmente passei conversando com os meus amigos animadamente. Isso é uma coisa. A outra é que o prazer e o interesse pela linguagem me fizeram como eu sou. Eu sempre procurei a oralidade. Eu sempre procurei o efeito disso sobre as pessoas e tentar identificar esse efeito. Eu sempre procurei de todas as formas estar à altura das outras propostas, fazendo sempre esforço de compreensão. E não me satisfaço nunca. Tanto é que eu, às vezes, acordo à noite tendo sonhado alguma coisa sem propósito e me dou conta, por exemplo, de que de algum modo, em algum momento, eu já tinha pensado naquilo. Daí eu fico com dois sentimentos que são ótimos e que são contraditórios. Um é de que eu talvez esteja me repetindo.

Até no sonho…

É. Repetindo. E isso não me deixa muito satisfeito, porque eu gostaria de avançar. Por outro lado, essa exigência que eu me coloco logo depois me satisfaz bastante. Ou seja, eu não estou acomodado à situação que está agora. Eu quero outra, mais adiante. Isso é fundamental. Eu acho que tu consegues viver melhor, na medida em que tu fazes isso, tu também ficas mais humano, mais próximo do erro. Mais próximo do acerto, mais próximo do início, mais longe do fim e assim por diante. Essas qualidades caracterizam um ser humano, como eu me considero, ou seja, um sujeito que consegue se expressar e que procurou usar todos os recursos dele.

Viste muita coisa mudar, da máquina de escrever para o computador e o celular. Tens alguma nostalgia de tempos atrás?

Sim, vi muitas mudanças. São muitas coisas. Uma das coisas que vez por outra me deixa parado, observando, é a letra. Escrever à mão. Lá pelas tantas, eu vejo que estou fazendo um poema. Digo: mas vem cá que que estou bobeando com poema? Mas na verdade eu estou exercitando a letra. E a letra é uma coisa muito própria, próxima. Parece que assim sai de ti. Ao contrário de uma coisa que seria mecânica, distante. Não, ela é próxima. A letra na mão. Bem na frente. E não porque ela exige, porque esta é a condição.

E coisas que te fazem pensar “que bom que estou nesse mundo para ver isso”. Algo que mudou para melhor…

Dentro dessa experiência toda que relatei para ti, me leva na direção de valorizar algumas coisas importantes, que ao longo do tempo foram se consolidando. Uma delas é a letra, a palavra. A outra, por exemplo, é toda a escrita sobre as mais variadas formas. Ela significa um prolongamento de ti pelos teus dedos, pelo teu olhar. Pela tua voz. E isso exatamente me parece ser também a possibilidade que tu tens de fato de superar limites habitualmente claros. Então presentemente eu noto que os jovens estão lendo menos e estão vendo mais caracteres nos seus equipamentos. E isso não é bom. E o jovem vai ter que descobrir isso. Essa é a descoberta dele. Eu duvido que uma escola seja capaz de levantar essa dúvida e persistir com essa dúvida. Porque ela é extremamente audaciosa e voraz. Não dá para fazer isso assim com facilidade. Tem que se fazer com calma. Então eu acho que à medida que as pessoas vão se dando conta de que algumas coisas são definitivas e outras não. E que as definitivas parecem ser definitivas, mas nem todos têm certeza.

Sempre gostaste de compartilhar conhecimento. Como nasceu o apelido de “professor”? Eu fiz vestibular para Filosofia.

Aliás, fui terceiro colocado na UFRGS. Fui estudar filosofia e já lecionava, então o apelido de professor foi natural. De toda a redação, talvez eu fosse o único que dava aula. Iniciei no jornalismo. Depois que fui fazer vestibular. A descoberta pela filosofia foi bem circunstancial. Sempre tive muitos amigos e sempre convivemos muito e era muito divertido. Com eles eu mantinha uma conversação intensa, eu gostava, e a exigência da conversação é que levou aos assuntos que normalmente faziam o grupo se associar. Isso é uma coisa de que nem sempre as pessoas se dão conta. Tu és muito a tua formação próxima, tu és muito o que de algum modo tu convives. Eu ficava muito satisfeito de conversar e de ouvir. Sobretudo de ouvir.

E a filosofia, como foi escolher e o que mudou na tua vida?

A filosofia para mim é fundamental, e eu tenho até hoje uma relação de parentesco com ela. Com a filosofia, recuperei a linguagem e suas exigências maiores. Defini assuntos que de outro modo eu não cogitaria. Mesmo o cinema, para dar o exemplo de uma das primeiras experiências, ele ficou numa tonalidade diferente tendo em vista a filosofia. Passei a ter uma exigência da concepção de mundo, das relações humanas que a filosofia exigia. E eu, em consequência, tive que dar respostas. E isso foi uma coisa que me ajudou a vida toda. Eu, toda a vida, fui assim. Eu sempre falei como estou aqui falando contigo. Sempre. Eu nunca falei menos do que estou falando contigo, talvez tenha acrescentado algumas coisas. No geral, a exigência da linguagem, se é que se pode dizer assim, sempre foi a mesma. E isso eu devo à filosofia. Ela foi indispensável.

A filosofia te deu mais respostas ou mais dúvidas?

As duas coisas. Tanto as respostas aumentaram quanto as indagações aumentaram. É normal. Eu ainda fiquei muito insatisfeito com a minha relação com o mundo à medida que eu compreendi que ele era assim ou assado. Eu não podia admitir, por exemplo, que certas coisas as pessoas entendessem como definitivas, e elas na verdade eram transitórias, precárias, simples. Isso era importante recuperar a cada instante. E isso a filosofia tinha me ensinado. E nunca me deixou de ensinar. Mesmo com os meus netos, por exemplo. Eu, vez por outra, me dou conta de que eu estou falando de alguma coisa que remete para a filosofia. Não que seja a filosofia, isso não. Mas que remete para a filosofia. O Vitor, por exemplo, que é um dos meus netos, ele tem uma cabecinha privilegiada. Então eu sento com ele aqui e ficamos conversando, e ele lê jornal e quer conversar comigo a respeito de uma ou outra coisa. Eventualmente, ele põe a cabeça na minha perna aqui, fica como se estivesse dormindo, mas na verdade conversando comigo. Isso, exatamente, é uma qualidade que eu soube desenvolver, eu soube valorizar e sobretudo eu cuidei de que ela realmente estivesse sempre à disposição das pessoas. Não só de mim. Das pessoas. E isso a convivência acabou registrando. Hoje eu sou amigo dos meus amigos, é apenas uma compreensão do mundo mais acentuada.

dele. Eu duvido que uma escola seja capaz de levantar essa dúvida e persistir com essa dúvida. Porque ela é extremamente audaciosa e voraz. Não dá para fazer isso assim com facilidade. Tem que se fazer com calma Então eu acho que à medida que as pessoas vão se dando conta de que algumas coisas são definitivas e outras não. E que as definitivas parecem ser definitivas, mas nem todos têm certeza.

Voltando para o futebol, que absorveu a maior parte da tua carreira. Como foi isso?

Era uma situação de dupla face, né? Primeiro era a exigência que faziam para mim. E segundo porque de fato eu entendi que ali eu podia dar uma contribuição boa. Hoje, por exemplo, se alguém disser que eu sou um cronista esportivo, ele não deixa de ter razão, mas acontece que eu não sou só isso, né? Pelo contrário, a condição de ser cronista esportivo me remeteu para um universo todo das relações.

Como te sentias, filósofo e culto, no meio de futebol todo esse tempo?

A exigência para dar nível a uma conversação de qualquer gênero, não só sobre futebol, ela tem que ser feita. Ela não nasce naturalmente. Eu gosto muito de conversar com pessoas a respeito do futebol porque é surpreendente o que elas pensam. Elas na verdade não chegam a pensar, elas se deixam emocionar. Isso é diferente. Uma coisa é ter emoção de alguma coisa. Formidável. Mas é só isso? O que está faltando? Está faltando o grau de compreensão que isso determina. Mas não a compreensão pretensiosa em que tu intervéns e travas uma conversação para colocar ali alguma coisa mais reflexiva. Não. A reflexão tem que nascer naturalmente das coisas que tu estás conversando. E isso no futebol, por exemplo, é talvez a grande carência hoje. Hoje e há tempos. Uma reflexão sobre ele mais calma e que determine tanto seus limites quanto suas grandezas e estabeleça a distinção desta atividade e de outras, e que fique no fenômeno humano do jogo. Para colocar ali dentro exatamente o fenômeno das grandes exigências pessoais. Isso não é fácil. E isso é o que tem que ser feito, porque, se tu tiveres essa compreensão, avança muito.

Sentiste necessidade de escrever mais sobre outros assuntos que não futebol?

Isso é uma possibilidade e eu cheguei a exercitar isso. As entrevistas que fiz na rádio com personalidades da cultura, sobretudo, e da política. Ali era uma tentativa de ir adiante da entrevista. De ir adiante, ir ao limite da conversação. De colocar uma questão mais de fundo. Eu me lembro que vários amigos meus que, depois de conviverem comigo no rádio e trocando ideias e conversando e tal, eram capazes de revelar uma coisa bem simples, mas para mim maravilhosa: “Eu não tinha falado disso antes”. Ou seja, suscitou-se, deu-se possibilidade numa conversação de que o outro lado, que normalmente não aparece, também viesse e fosse surpreendente. Isso é uma coisa maravilhosa. Porque essa é uma conquista, né? Não é um acréscimo, não é uma subtração, é uma conquista, é um avanço.

Uma saudade da rotina antiga?

Estou procurando retomar essas coisas todas de uma forma mais aberta. Mais eu mesmo diante das coisas. E não tanto eu correspondendo ao que estão me pedindo, isso ou aquilo. E isso é difícil. Porque tu tens que preterir certas coisas.

Chegaste a te arrepender em algum momento e achar que deverias ter adiado a aposentadoria?

(Risos) Não, não. Eu também fiquei doente, não é? Tive um problema cardíaco relativamente sério e tive que parar. E a parada coincidiu com a aposentadoria. Então aí as duas coisas se combinaram. Não é a melhor combinação. Porque, na verdade, uma deficiência minha eu acabei colocando como uma circunstância. Não devia ter feito isso. A gente e escolhido e tem que responder. Essa é toda questão. A resposta é uma exigência que a vida faz para a pessoa. Quem fica aquém disso não se intromete nas coisas, não quer saber, acha que não é bem o padrão de preocupação que ela deve ter. Essa pessoa está vivendo menos e vai viver cada vez menos, e isso é ruim.

Algum projeto?

Eu estou tentando organizar um livro. Um livro em que faço experiências de texto e também algumas experiências existenciais minhas.

E a tua passagem pela política. Te desencantou ou apenas o jornalismo falou mais alto?

Aceitei o convite do Simon para concorrer. Fui eleito, reeleito e secretário de Ciência e Tecnologia. Depois substituí um amigo na pasta da Educação. Foi uma experiência muito dura, difícil, áspera, ácida. Eu fiz o que pude.

Tu tinhas dom de gestão?

Sim. Sempre tive. Mas é que é uma situação tão ambígua, que, se hoje tu prestares atenção, como é que está a educação? Nós estamos há muito tempo em uma situação de deficiência, numa situação deficitária. Então tu vais ser secretário numa área dessas, como é que tu vais fazer?

Tu não consegues alterar basicamente o que está sendo feito. Tu não consegues acrescentar um dado inteiramente novo. Tu tens de certa forma que repetir. Isso é frustrante. Me desgastou e voltei para minha carreira.

Como tu percebeste todo esse processo de impeachment?

Estamos vivendo um ano político muito difícil. Tivemos a experiência do Lula. Duas gestões dele e mais duas da Dilma, e com isso o PT e a sua experiência básica, que era uma tentativa de participação da comunidade menos favorecida nos processos todos. Isso tudo ficou muito difícil e complicado e acabou redundando em um grande erro geral. E nós estamos vivendo esse erro agora. Estamos em um governo sem recursos, estamos com uma perspectiva muito escassa pela frente. Os partidos políticos praticamente perderam a sua palavra. Hoje, na campanha eleitoral, omite-se o partido. Com toda a crise que se está vivendo, o partido acaba derrubando. Fico com uma pena brutal de quem está chegando agora para começar a tomar as suas decisões pessoais, porque não tem um critério. Não tem uma situação favorável. Há uma precariedade geral e moral e isso é o momento político. Este é um momento em que todo mundo está se perguntando: o que se pode fazer? E, de uma certa forma, nada.

Do que sentes mais falta da juventude?

Sinto da ingenuidade. Perdi. Fui perdendo e isso é a falta que eu tenho. A gente fica, digamos assim, esfolado. Esfolado é bem a palavra.

E o que é bom do amadurecimento?

Muitas coisas. Temos uma maior compreensão das coisas. Uma maior velocidade de intervenção dos processos. Entendemos tudo com mais naturalidade o que está acontecendo e basicamente ficamos com a vantagem de poder viver com intensidade sem nenhum remorso.

Algum fato marcou mais em todas as coberturas de Copa do Mundo?

Em Roma, na Itália. Eu fui levado a um saguão. E todos estavam em torno de mim e eu não estava entendendo bem o que era. O Luis Fernando Verissimo foi o designado para falar comigo. Faltavam uma ou duas rodadas da Copa da Itália. E ele me comunicou que minha mãe tinha morrido. Eu tinha levado meu filho Felipe comigo. Tive que abraçá-lo, consolá-lo e dizer que ele ficaria e que eu voltaria. No dia seguinte, eu estava no aeroporto viajando de volta. Essa foi uma experiência de Copa do Mundo. Cheguei depois do enterro.

A carreira de jornalista sacrifica a vida pessoal. Que avaliação tu farias de como tu conseguiste te dividir entre carreira e família?

Não consegui ser o que eu imagino que devesse ser. Me esforcei e até certo ponto me deixei levar por circunstâncias. Procurei ser justo. Isso me parece uma qualidade das pessoas que elas não devem perder. O sentimento da justiça. Capaz de ser justiceiro. Eu não fico com tristezas e nem alegria, claro, porque ao longo do tempo da vida em que ela percorre uma longa tradição, que é o meu caso, por exemplo, ela vai te marcando fortemente e tu ficas assim, na verdade. E tu ficas reconhecido como um cara que faz isso, faz aquilo, e assim por diante. Ou seja, tu reconheces os teus limites e tentas conviver com eles. E fazes deles exatamente a tua orientação, o teu norte. Isso é muito difícil de fazer. Mas, ao mesmo tempo, só quem tenta fazer que tem direito a falar disso. Caso contrário, a maioria das pessoas tem fracassado e esse fracasso decorre do fato de que elas não conseguem ser o que deveriam ser.

O que achaste das Olimpíadas no Brasil?

Nós tínhamos uma situação extremamente complexa e até certo ponto assustadora, que era o fato de algum atentado ocorrer. E nossa situação sempre foi muito aberta. É preciso reconhecer que as autoridades foram exemplares. Não tivemos nenhum episódio dessa natureza. Nós tivemos tranquilidade para fazer as coisas. E isso inegavelmente é uma conquista. Eu fiquei orgulhoso pelo lado da conquista, da tentativa de superação daquele que habitualmente é brasileiro. Sem jeitinhos. Não. Dessa vez, as coisas foram feitas com critério e com segurança. E isso nos devolveu o orgulho outra vez.

Será que vamos aproveitar todo esse legado?

Espero que sim. Sim, se olharmos todas as vitalidades nas competições, percebemos que são setores ainda muito pre-cários. A escola não aparece. Fiquei surpreso que os militares compareceram. São ganhos reais. Tudo isso à medida que se consolidar um ganho da população, um ganho do Rio de Janeiro, aí já melhora um pouco.

E aquilo que falam de que a Seleção Brasileira está de salto alto, não joga mais com alma? O futebol mudou muito, né?

O que é preciso entender é essa mudança e em que direção ela vai. Então hoje, por exemplo, o grau de responsabilidade é muito alto, e o grau de resposta tem que ser também alto. E tem a questão da profissionalização. Ou seja, em que esses jovens são requisitados para os países mais variados, mais surpreendentes, a China, por exemplo. Então isso tudo vai ter que conciliar em um achado em que o futebol fique valorizado e que as novas gerações encontrem nele o grande fato importante de realização, o que muitas vezes escapa, porque são tão solicitados. É tanta exigência, que eles acabam perdendo um pouco.

Trabalhar com o esporte faz com se perca o apego a um clube? As pessoas sempre te perguntam qual teu time?

Sempre. E faz muito tempo que isso não se colocou como uma questão para mim.

Dizem que perde a preferência?

Não, não. Isso não é verdade. Isso é justificativa de quem quer ser torcedor. Mas se tu vais ser profissional dessa área, a primeira qualidade é equidistância. Tu tens dois, um e o outro. E eles estão separados.

O que o jornalismo te ensinou?

Me ensinou a viver. A compreender as relações. Avançar sobre mim mesmo. Me tornar mais razoável. E sempre me ensina mais. Eu não creio que estejamos vivendo uma crise no jornalismo. Não. Pelo contrário. Há uma situação no jornalismo que se renova intensamente, e as pessoas têm que estar à altura de saber para que lado essa mudança está ocorrendo e o quanto ela é importante.

Por Mariana Bertolucci

Fotos Tonico Alvares

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